Em Porto Alegre, estava ainda um tanto perdido em seus caminhos e descaminhos, entre as idas e vindas de seminários, oficinas e conferências do Fórum Social Mundial 2005, quando, numa manhã, por volta das 11h30, passei, por puro acaso (aquele não era meu caminho de todos os dias) pela Praça da Alfândega a caminho da famosa Usina do Gasômetro - local que era a "usina" de eventos e acontecimentos do V FSM, e o seu coração. Mas a Praça da Alfândega não estava apenas no caminho do Fórum, estava à sua margem. E assim exercia, indiferente, sua rotina feita de pombos (e demais pássaros), árvores, sombras, vendedores ambulantes, aposentados, prostitutas, poetas, estátuas etc. Foi nessa praça que me deparei com aquelas mulheres. Mulheres de triste figura, solapadas pelo tempo, "usadas" por tantos e diversos homens, com seus olhares perdidos, prenhes de melancolia. Mulheres "da vida" - como se dizia antigamente. Três delas conversavam animadamente, reunidas em torno de uma vendedora de salgados. Escutei uma delas afirmar, entre um olhar lascivo e uma dentada numa oleosa coxinha de galinha, que fulana (referindo-se a uma "colega", é claro) é que estava bem, pois, àquela altura (para registro, reitero: 11h30) já havia feito três programas. Uma outra daquelas mulheres, sentada num dos bancos da praça, ao me perceber passar, disse-me, sem muito entusiasmo ou malícia, num certo automatismo, algumas palavras que supus serem de sedução, mas que, confesso, não compreendi "patavinas". Aquela pobre mulher de, no máximo, trinta anos, com seus seios flácidos e sua barriga proeminente, com seu olhar cansado e dentes amarelecidos (pela nicotina? pela pobreza? pelo descaso - quem saberia dizer?). A sujeira nas unhas que nem mesmo as várias camadas de esmalte ordinário conseguia dissimular completamente. Quem acalentará as dores, os anseios e temores daquelas mulheres da Praça da Alfândega? Curiosamente, fiquei sabendo mais tarde, algumas prostitutas reuniam-se naquele mesmo instante, em uma das oficinas do Fórum, para discutir seus direitos e sua inserção na sociedade. Coisas do Fórum. Coisas da eterna busca de um outro mundo possível. Já bem mais tarde, voltando para o meu hotel, ainda naquela mesma Praça da Alfândega, quando os raios de sol já rareavam no poente e as cores ganhavam um tom mais calmo e melancólico, quando todas as prostitutas já se haviam recolhido aos quartos de hotéis baratos onde ganhavam o pão de cada dia com homens que naquele instante saiam do trabalho, deparei-me com aquela cena aparentemente banal. Mas, conforme pude perceber mais adiante, só aparentemente banal. Percebi que um grupo de transeuntes e participantes do Fórum observava uma mulher estática, vestida com uma longa e farta veste branca, uma espécie de longo vestido cheio de dobras, e envolta por um manto diáfano, também branco. Um pequeno aparelho de som tocava uma música tipo new age (a la Enya ou Andreas Wollenweider), o que auferia àquela cena algo de transcendental, etéreo. Uma pequena tabuleta aos pés daquela "estátua-viva" indicava que ali estava a "Dama da Paz". Sim, a guerra aflige a muitos. Mas que guerra? A guerra do Iraque - tão condenada, e combatida, em todo o Fórum e em todo o mundo? A guerra das ruas? A guerra que travamos todos os dias, compungida e silenciosamente, dentro de nós mesmos? O que pretendia nos dizer aquela "estátua", aquela mulher em sua alegoria um tanto kitsch? Quem era aquela mulher por detrás daquela "estátua"? Quais as suas dores, seus temores? E aquela "estátua", ali, com suas mãos estendidas em sua eterna súplica pela paz. Confesso que, a princípio, aquela cena não me comoveu, apenas atraiu minha curiosidade, como, certamente, atraíra também a curiosidade dos demais passantes ali reunidos. Foi aí que, num gesto inesperado, uma mulher que estava acompanhada de seu homem (marido? noivo? namorado?), homem este que, por sua vez, diligentemente procurava os melhores ângulos para tirar algumas fotos da sua mulher ao lado da tal "Dama da Paz", essa mulher de repente se dirigiu até aquela "estátua" e segurou a sua mão com ternura. E, por um longo instante, ficaram as duas ali, mulher e "estátua", a fitar-se. E ficaram assim, fitando-se, por aquele instante que pareceu uma eternidade a todos que observavam a cena, mas, sobretudo, ao seu companheiro, que, entre pasmo e aflito, a tudo assistia. Mas quem entende a alma feminina? Quem poderia enxergar os laços melífluos e intangíveis que, naquele momento, envolviam e uniam aquela mulher àquela "estátua"? A mulher, então, para espanto ainda maior do seu parceiro e comoção dos presentes, após beijar as mãos da "estátua", foi tomada por um choro compulsivo. Ela ficou ali, mirando a "estátua", olho no olho, e chorando, ainda por alguns longos minutos. O homem, há muito já guardara a máquina fotográfica na bolsa. Há muito fora envolvido por uma bruma de sentimentos difusos e confusos que mesclavam uma certa sensação de irrealidade, comoção, perplexidade e constrangimento. A "estátua" então, num gesto de afeição e cumplicidade, subvertendo a frieza e solidez da sua condição de estátua, moveu os braços e acarinhou a face daquela mulher, num acalanto, libertando-a assim daquelas amarras, daquele emaranhado de emoções. A mulher, então liberta, foi ao encontro do abraço do seu homem, que a acolheu e ao seu pranto. Por que chorava aquela mulher? Teria ela deixado-se levar por aquela fantasia da mulher-estátua? Ou tudo aquilo teria deixado de ser, em sua cabeça, por alguns instantes, apenas uma fantasia, uma alegoria e tornado-se uma espécie de "passagem", de "libertação"? Teria ela se deixado envolver e arrebatar completamente, sem freios, por aquela clima, pela música, por toda aquela "mística"? Pode ser. Teria ela, em sua necessidade de acreditar, transformado aquela "estátua" numa imagem de uma santa? Por que "milagre" teria clamado aquela mulher naquele momento? Uma brisa morna feita de silêncio e dor parecia ter varrido as entranhas daquela mulher. Que guerras e conflitos ela silenciava em seu interior para necessitar, com emoção e urgência irrefreáveis, daquele momento de entrega e de paz, daquele momento de pranto? Será que ela realmente amava aquele homem? Em que teria pensado aquela mulher? Nos mortos de tantas guerras? - improvável. Em seu amor mítico? Em seu pai? Nos homens de sua vida? Nos seus infortúnios? Em quê ou em quem? É muito difícil entender o que vai na alma das mulheres. É difícil decifrar o olhar perdido e o choro de uma mulher. Assim como me foi difícil apreender o olhar distante e triste daquela prostituta da Praça da Alfândega.
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