Conhecem-se várias teorias acerca do Estado. O fato é que o homem, em determinado ponto de sua evolução, considerou-o indispensável para garantir a vida em sociedade. Pode-se divagar. O romântico Jean Jacques Rousseau considerava que o homem nasceu bom (premissa discutível) e a sociedade o deformou no sentido de proporções egoístas, tornando impossível uma convivência sem sérios e mortais conflitos. Hobbes parece ter sido mais realista: “homo homini lupus” (o homem sempre foi e é predador de seus semelhantes). Daí a necessidade de um “controle externo”, dotado de poder suficiente para pôr fim à guerra. De qualquer sorte, pressuposta a indispensabilidade do Estado, vários outros filósofos e teóricos do Estado trataram de aperfeiçoá-lo. Montesquieu cuidou de repartir e harmonizar os poderes. Locke se preocupou com os direitos do homem face ao “Leviathã” (extremo de Hobbes). Inúmeros juristas se dedicaram à “teoria geral do Estado”, base preliminar da ciência do direito. Depois de criado o instrumento, por um imaginário contrato social ou por simples imposição da vida, tratava-se de equilibrá-lo, expungir seus excessos ante os cidadãos que o criaram. A sempre necessária busca da posterior resiliência. Entre outras, a principal característica do Estado é a soberania. E não se trata de poder em relação aos demais países, mas de soberania interna. Alguns a classificaram como “o poder incontrastável de querer coercitivamente”. A coerção do Estado não pode ser desafiada. Outra definição, mais democrática, convergiu no sentido de considerar a soberania “o poder de decidir em última instância sobre a eficácia do direito”. Explica-se esta última definição: depois de esgotados os conflitos, dentro do devido processo legal, com ampla defesa recíproca, a decisão dos juízes sobre o direito controvertido tem poder incontrastável para as partes envolvidas, que a ele devem render-se. Para garantir-se esse poder, sem o qual as sociedades sucumbem, deve haver instrumentos de coerção, inseridos no poder de polícia, considerado em sua amplitude de meios, não apenas na jurisprudência do cassetete ou das balas de borracha. As experiências estatais, mundo afora, construíram meios civilizados e eficientes de fazer cumprir suas decisões. A guilhotina foi utilizada indiscriminadamente por governos, não pelo Estado. A humanidade aprendeu. As guerras mundiais do século passado, com todas suas agruras e sofrimentos, aperfeiçoaram a experiência humana quanto à indispensabilidade da vida organizada e do ajuste entre a vontade popular e a vontade do Estado. Contudo, nosso jovem e atribulado País parece estar imerso nas crises já superadas há séculos, alhures. Nosso Estado é vítima de desafios que partem de todas as margens do horizonte político. Do crime organizado. Do tráfico de drogas. Da justiça particular dos meliantes. Da rede social voltada para quebrar o princípio da autoridade. Da ousadia animalesca das torcidas esportivas organizadas. E, recentemente, de corporações antes respeitáveis de trabalhadores e de movimentos sociais fomentados pelo atual governo populista e de cujo radicalismo este perdeu o controle. A criatura ataca, inclusive seus insensatos e demagógicos criadores. As consequências, porém, se abatem sobre a parte mais fraca, o povo, sobretudo das grandes concentrações urbanas. Em mais de duas décadas de advocacia em favor dos rodoviários de São Paulo, na companhia de lideranças experimentadas e responsáveis, conseguimos elevar os salários de cobradores de ônibus da antiga CMTC, que recebiam um salário mínimo mensal, muito inferior ao atual, e dos motoristas, cuja remuneração era próxima, para níveis dignos e compatíveis com um trabalho tão desgastante na capital paulista. Tudo, porém, em que tivessem pesado lutas e confrontos grevistas, como diria o saudoso professor Miguel Reale, “nos quadrantes do direito positivo”. Celebrada uma convenção coletiva ou proferida uma sentença normativa pela Justiça do Trabalho, convocávamos assembleias de milhares de trabalhadores. E, nesse clima, todos nós (advogado, diretores do sindicato e lideranças das mais diversas colorações ideológicas), tratávamos de convencer um enorme grupo levado pelo inconformismo e pela emoção, da necessidade de observar o direito e o Estado. Não raro, ao custo de sérios riscos à nossa integridade física e até mesmo à vida. O certo é que os fatos voltavam à normalidade, em geral com os ganhos possíveis à categoria profissional, respeitada a autoridade do Estado e da lei. Nossa sempre sofrida e desvairada cidade voltava ao normal. Jamais foi necessário que um Tribunal se reunisse em pleno domingo para julgar uma greve como a dos metroviários. Julgamento cuja eficácia é uma incógnita. Tal fato só deve ter ocorrido em países sob graves crises. É o que ocorre com o nosso, em que o Estado parece ingressar em imponderável estado falimentar. Às vésperas do maior espetáculo esportivo da terra. Nota do Editor: Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho e fundador da Garrido de Paula Advocacia.
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