Quem nasceu e morou atrás de um cemitério, como este pobre cronista até os sete de idade, não tem realmente muitos motivos para ter medo de assombração. O que me assusta mesmo, e sempre no mundo dos vivos e dos vivaldinos, são coisas como o Severino Cavalcanti com toda essa visibilidade midiática ou o falcão-peregrino Rumsfeld apertando a mão do Lula e a cada duas palavras mencionando dez vezes a Amazônia. Isso é que dá um frio de morte na espinha! No velho Caju da minha infância, ao contrário, beirava o trivial, entre o crepúsculo de um dia e a alvorada do outro, deparar com noivas de cemitério paquerando na pracinha do bairro, um ou outro defunto tomando cafezinho no bar da esquina ao lado de um estivador comunista, vivo, coveiros sem cabeça espiando (não me perguntem como) por sobre o muro do campo santo, sem falar no pontualíssimo bonde das madrugadas, repleto de almas do Carmo, que partia da ponta do Caju em direção à Avenida Brasil... mas cortando caminho pelo cemitério, ou seja, sem usar trilhos nem suspensórios elétricos, uma verdadeira farra de além-túmulo. Era assim, pelo menos, que o capetinha do número 25 da rua Carlos Seidl (como me chamavam carinhosamente os vizinhos) gostava de costurar as conversas dos mais velhos, o clima dramático e eventualmente soturno das radionovelas que sua mãe acompanhava e as histórias que os seus dois primos, já adolescentes, traziam da rua, ou do outro mundo mesmo, pois semanalmente eram ambos contratados para limpar os mausoléus da ala mais rica do cemitério. Um dia, morto de inveja, armei um barulho dos diabos, e me levaram com eles. Enquanto os dois lavavam por fora as paredes daqueles grandes abrigos de mármore, eu entrava e saía à vontade dos mausoléus, curioso de tudo, sem experimentar o menor calafrio diante da eternidade muda e impassível. De fato, chegava a ouvir profundos suspiros vindo do sepulcro onde devia estar o defunto ou os ossos do defunto, mas nem me passava pela cabeça que aquilo não fosse rigorosamente normal. Parecia haver um concerto perfeito entre mortos e vivos naquele delicioso pedaço do Caju. Só para dar um exemplo dos mais irrisórios, numa noite em que faltara luz no bairro minha tia abraçou um ladrão dentro de casa, pensando tratar-se do meu tio, que costumava chegar tarde do trabalho. Quando se deu conta do engano, desmaiou com um grito, alertando os vizinhos, que logo acorreram, com a última edição revista e vergonhosamente ampliada da Lei de Lynch embaixo do braço. Se em vez do ladrão fosse uma alma penada, tenho certeza que minha tia teria passado um cafezinho ou um chá de cipreste para ela, e que ficariam as duas no maior papo do mundo na sala de visitas até a luz voltar.
|