Desculpem-me a franqueza, mas o cruel e estúpido assassinato da americana Terri Schiavo não pode ser classificado, nem mesmo comparado, à eutanásia, como quer fazer transparecer a hipocrisia dos verdugos. Grosso modo, para que se caracterize eutanásia a condição principal é o intenso sofrimento da vítima, acompanhado de diagnóstico irreversível. O estado de Terri nos últimos anos não era, definitivamente, de sofrimento intenso. Essa alegação nunca houve. Evidentemente havia danos cerebrais. Isso não se discute. A extensão desses danos, por outro lado, a ciência não tem ainda como determinar. Não há, tampouco, que se falar em morte cerebral, já que ela respirava sem auxílio de aparelhos, bem como mantinha movimentos musculares, a princípio voluntários. Quem prestou atenção nas poucas cenas mostradas pela TV reparou que seus olhos piscavam ante os carinhos da mãe, bem como acompanhavam os movimentos dela no recinto. Havia também movimentos de cabeça e braços. A sonda através da qual seu corpo era alimentado não é muito diferente das que são usadas por muitas pessoas ainda lúcidas que, por quaisquer motivos, se viram impossibilitadas de alimentar-se normalmente. O físico inglês Stephen Hawking vive com diversas sondas semelhantes há vários anos, contribuindo com a sua inteligência ímpar para o desenvolvimento da ciência. O próprio Papa João Paulo II recebera mecanismo semelhante. O que ocorreu na Flórida, volto a afirmar, foi um bárbaro assassinato, cometido pelos poderes constituídos do Estado norte americano. E o pior, escolheram a forma mais cruel e desumana para matá-la: simplesmente deixaram-na definhar por duas semanas, sem comida e sem água. Qual o sentido de impor a ela e a seus parentes essa prolongada agonia? Nem mesmo os animais nós tratamos dessa forma. Quando se quer sacrificá-los por algum motivo, a opção tem sido sempre a morte rápida, com o menor sofrimento possível. Até mesmo os piores bandidos, quando condenados à pena extrema, são brindados hoje com técnicas e sistemas que visam a minimizar-lhes a dor. Nunca se viu algo parecido. Dói-me a alma dizer isso, mas era preferível aplicar-lhe uma injeção letal do que fazer o que fizeram. Não havia dúvidas de que, como qualquer um de nós, a fome e a sede matariam-na. Por que então deixá-la naquela situação indigna por duas semanas? Será que os seus executores aplacaram as respectivas consciências sob a cretina alegação de que apenas retiraram os meios artificiais que a mantinham viva? Queriam provar ao mundo que ela não podia viver sem o auxílio da máquina? Que dizer então daqueles que dependem de marca-passos? Ou dos diabéticos que precisam sistematicamente da insulina? Devemos matá-los a todos somente porque são incapazes de sobreviver de forma natural? De todos os argumentos que ouvi em defesa da vida de Terri, o mais agudo, direto e contundente foi dito por uma compatriota sua, num programa de TV na CNN. No meio de intensa discussão entre diversos especialistas a mulher argumentou com simplicidade que, em vez de procurar razões para tirar-lhe a vida, deveriam perguntar a si próprios que prejuízos ou danos seriam impostos às pessoas envolvidas e à sociedade caso se decidisse entregar a tutela de Terri aos seus familiares? Nem seu marido, nem tampouco o Estado sofreriam qualquer dano com essa decisão. Por que, então, não entregá-la aos seus pais, independentemente do seu estado físico e mental, fosse ele até mesmo vegetativo, como classificou a justiça? Usando as palavras do articulista Reinaldo Azevedo, do site Primeira Leitura, por que retirar daquelas pessoas o direito de regar e cuidar da sua flor? Desde Platão, os adoradores do Estado sempre desejaram substituir a vontade divina pela do Leviatã. Devem estar festejando. Enquanto isso, todos os que acreditamos que a tarefa primordial do Estado é zelar pela vida e pela liberdade dos indivíduos, liberdade essa que inclui cuidar dos seus entes queridos e, porque não, tratar dos seus vegetais, estamos de luto. Nota do Editor: João Luiz Mauad é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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