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SEÇÃO
Crônicas
14/04/2005 - 16h00
Retrato de um homem só
Lula Miranda - Agência Carta Maior
 

Era um bonito retrato. Tão bonito que dava a impressão de ter sido tirado por um fotógrafo profissional. Se bem que só quem teria essa "impressão", ou lançaria um olhar assim tão "técnico" sobre aquele fotograma, seriam, sem dúvida, aquelas pessoas que se preocupam realmente com esse tipo de detalhe - como eu, aliás. Talvez os metidos a fotógrafo ou os tais fotógrafos mesmo - amadores ou profissionais. Para uma pessoa comum era apenas a foto de um menino. Um bonito menino, vá lá, chutando uma bola de couro num campo de várzea qualquer: lourinho, cabelo bem liso e comprido, todo paramentado com o uniforme de um time de futebol (camiseta e short vermelhos, meia também vermelha nas extremidades, mas com uma grossa faixa branca na altura da canela). O retrato tinha cores bem vivas. O verde da grama. O vermelho do uniforme. Os pentágonos (os chamados gomos) pretos e brancos da bola. O branco na pele e no belo sorriso daquele menino ali flagrado naquele instante de liberdade e alegria. Por que só as crianças têm esse sorriso estampado no rosto?

Mas era apenas uma foto no porta-retratos que ficava no quarto daquele homem em cima do criado-mudo. Também havia um outro porta-retratos, com aquela mesma fotografia, na sua mesa de trabalho. Uma mesa de trabalho, diga-se, absolutamente bem arrumada e impecavelmente limpa, sinal de que ali sentava-se um funcionário exemplar, dedicado, pontual, assíduo. Um funcionário que havia cumprido à risca, sem dúvida, e com o máximo denodo possível, todas as etapas dos mais diversos cursos de "Reengenharia" e "Qualidade Total" a que fora submetido. Um funcionário que chegava todos os dias, impreterivelmente, fizesse chuva fizesse sol, às 8 horas. Seu nome: Sebastian. Esse é o nome do nosso personagem.

Sebastian era um homem maduro, já na casa dos cinqüenta anos. Era um solitário, um solteirão convicto. Há muito se acostumara com a solidão e com a liberdade da vida de solteiro. Mas não vivia completamente só. Uma vez por semana, geralmente nos finais de semana, solicitava, numa agência de acompanhantes, a companhia de uma das suas "meninas" - como ele mesmo costumava dizer. Acostumara-se assim com o "amor" das prostitutas. Segundo ele mesmo ponderava, nas justificativas que dava a si mesmo em seus freqüentes solilóquios quando "conversava" consigo mesmo e com seus fantasmas e culpas, assim lhe era mais cômodo: não estabelecia vínculos, não tinha que suportar TPMs e outras flutuações de humor, não tinha que se sujeitar à "tirania" de certas mulheres, podia assistir futebol na TV a hora e o tempo que desejasse, não precisaria tampouco se preocupar com as vicissitudes do amor, suas dores e delícias e, maravilha das maravilhas, não precisaria mais "discutir a relação". O que poderia nos levar à precipitada conclusão de que ele não gostava ou que não entendia muito bem de mulheres. Mas não formulemos juízos apressados. São apenas coisas da cabeça de Sebastian (de Sebastian e de outros tantos homens como ele). Sebastian e suas inconfessáveis idiossincrasias.

Todas as "meninas" que o visitavam se encantavam com a beleza daquela criança e, quase sempre, faziam comentários amáveis sobre aquele menino que Sebastian apresentara-lhes como sendo seu filho. Assim como às suas colegas de trabalho, que também já haviam, por diversas vezes, encantado-se com aquela criança do retrato e, quase todos os dias, notadamente as funcionárias da faxina, não deixavam de elogiar o quão gracioso era seu filho.

O que ninguém sabia é que aquela foto não era do filho de Sebastian coisíssima alguma. Na verdade, Sebastian sequer tinha filhos. Apenas comprara aquele porta-retratos numa dessas lojas que revelam fotografias e vendem álbuns, chaveiros, agendas e... porta-retratos. Aquela fotografia apenas viera junto com a moldura. Na verdade, comprara aquele pequeno utensílio para colocar uma foto da sua equipe de trabalho. Porém, ele foi afeiçoando-se àquela fotografia, foi afeiçoando-se de tal forma que ela foi ficando e foi ficando ali em cima da sua mesa de trabalho. E ficou, em definitivo, a partir do dia em que uma colega de trabalho lhe perguntou quem era aquela criança no retrato. Ele, meio que de improviso e, a princípio, na brincadeira, disse-lhe que era a foto do seu filho. "Como!? Eu não sabia que você tinha filhos!" - exclamou a mulher. "Tenho um, sim. Ele mora com a mãe na Suíça". A Suíça veio à sua cabeça, num tolo improviso, como uma justificativa à tez tão branca do menino e aos seus cabelos claros.

A mulher empolgou-se de tal modo com aquela novidade que ele sentiu-se na obrigação de sustentar e dar uma certa verossimilhança àquela história do filho que morava na Suíça. Nos dias seguintes, todas as mulheres do escritório vieram ver o tal "filho" de Sebastian. E aquilo que a princípio era apenas uma brincadeira transformou-se numa "verdade": aquele era seu filho. O filho que nunca tivera.

A partir daí, aquele menino passou a ser "de fato" seu filho. Pelo menos na sua fantasia, na sua "realidade" de homem solitário e sem parentes (Sebastian era órfão e não tinha familiares: avós, tios, primos ou sobrinhos). Resolveu então, tomado por inquestionável e inexplicável afeição paterna, que colocaria um porta-retratos igual aquele, também na sua casa. Assim deixaria de ser um solteirão, solitário e sem filhos, e, de quebra, além disso, ficaria livre das suspeitas e preconceitos que essa sua condição de homem solteiro atraía para si. Já se falava à boca miúda, no escritório e até mesmo no prédio onde morava (apesar das freqüentes visitas de suas "meninas"), sobre uma suposta homossexualidade de Sebastian.

Mas Sebastian era apenas isso: um homem só. E parecia feliz assim, nessa sua condição de homem solteiro, solitário e sem filhos, e que buscava algum conforto e acolhimento no "amor" das prostitutas.

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