Considerando o velho adágio latino de que "no vinho está a verdade", temos agora por evidente uma versão apropriada para abstêmios. Quem não desejar, por alguma razão incompreensível, esse excelente e antigo veículo para a plena sinceridade, pode recorrer a uma viagem aérea com o mesmo resultado. Com certeza é mais caro para os que, como nós, não dispõem de convite para o AeroLula. Estou me referindo, é claro, às declarações recentes do arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Scheid, logo que chegou à Europa para as exéquias do Papa. Como se sabe, tomamos conhecimento pelo bispo que o nosso estadista fundou uma nova religião: o "caoticismo". Muitos já haviam suspeitado. Segundo, ainda, Dom Eusébio, o Presidente não se entende bem com o Espírito Santo e, diria o Governador Alckmin se lá estivesse: nem com São Paulo. Dá-se, entretanto, maravilhosamente bem com ditadores longevos como Fidel Castro, formando uma dupla de "bobocas" segundo o mesmo Dom Scheid na sua crise de franqueza e, também, com pretendentes promissores como Chávez. Poderia, assim, formar uma trinca. Curioso que esse acesso de sinceridade eclesiástica causou alguma estranheza. Parece que há muito mais tolerância com a hipocrisia como atributo clerical do que com a franqueza nua e crua. Houve quem achasse até mal educado. Já Dom Cláudio, candidato "ex pectore" do Presidente para o papado, ao ser interrogado a respeito, foi muito gentil dizendo: "Lula é católico ao seu modo", e mostrou uma doce condescendência que não faz justiça nem à doutrina, nem eleva muito as qualidades religiosas do personagem. Mas, está certo, ele também é presidente ao seu modo e tem o direito de exercer a fé ou mesmo a falta dela como bem desejar. Só não precisava, depois, comungar sem confissão e dizer que o fazia porque era um homem sem pecados. Nem o Santo Padre chegou a tanto mas, afinal, acho que é mesmo o modo dele. Depois do episódio, é claro, surgiram as costumeiras pressões, pois a nudez do rei é protegida com unhas e dentes. Assim, apareceu uma nota do Arcebispo carioca anunciada como um "recuo nas críticas". Na nota, basicamente, o bispo afirma que "A entrevista... deu-se em ambiente impróprio, no barulho da saída do Aeroporto de Roma, após longa e cansativa viagem". E não há, na verdade, recuo algum, exceto a insinuação de que, em outras circunstâncias, teria sido mais comedido nas palavras. Lembrou-me a explicação dada por Carlos Lacerda quando, após a deposição de Jango em 1964, chegou ao aeroporto de Orly e ao ser abordado por jornalistas franceses com diversas perguntas maliciosas, literalmente encheu-os de respostas irônicas e agressivas. No livro "Depoimento" - Ed. Nova Fronteira /1977 - Lacerda comenta o seu destempero diplomático atribuindo-o aos efeitos de uma longa e cansativa viagem e contra-indica a negociadores e diplomatas fazerem reuniões de responsabilidade logo ao chegar de um vôo mais prolongado. É algo para se discutir. Talvez seja o caso de estabelecer o contrário e, para evitar rituais de hipocrisia excessiva, exigir que as reuniões sejam logo após umas doze horas de jato. Além dessa nova fórmula de vidência e sinceridade, sem dúvida promissora e cujo mecanismo biológico merece ser investigado pela ciência, é impossível não observar como o fenômeno da proliferação dos especialistas novamente inundou a imprensa. Agora surgiram na TV, no rádio e nos jornais inúmeros peritos em Igreja e Vaticano, analistas com a profundidade que uma formiguinha atravessaria com a água pelas canelas, como dizia Nelson Rodrigues. Esse fenômeno já se tornou recorrente. Sempre que há um fato de grande repercussão surge, como se houvesse um toque misterioso de clarins inaudíveis para os demais, uma legião de "estudiosos" a deitar falação explicando como realmente são as coisas. Lembro-me do onze de setembro: pude ouvir comentários e explicações de "especialistas", as mais estúpidas possíveis, bastante inferiores às considerações de alguns jornalistas amadurecidos e menos pretensiosos. Nada contra o direito de ter opiniões, todos as temos, mas o que incomoda é o injustificável ar de autoridade ao emiti-las e, se olharmos a fundo, obedecem sempre ao mesmo esquema. Também agora, temos que ouvir "sábios" carimbando o pontificado de João Paulo II em itens progressistas, portanto bons, e itens conservadores, portanto maus. O mesmo carimbo vai sendo aplicado sobre a testa de cada um dos cardeais e assim como há o legado "misto" para o falecido papa, também temos cardeais híbridos, por exemplo: socialmente progressistas, porque aceitam algumas categorias marxistas misturadas à religião, e moralmente conservadores, porque não admitem o aborto, casamento de homossexuais e por aí vai. Gostaria de saber em que categoria enquadrar os tais padres "pedófilos" que, na verdade, são mesmo é pederastas, todos eles envolvidos com garotinhos, embora os politicamente corretos preferiram levantar sobre o assunto a questão do celibato. Serão eles progressistas ou conservadores? Se o problema é o celibato, porque não arrumar uma amante, um pecado saudável e sem cometer nenhum crime? Os teólogos convencionais, digamos assim, raramente aparecem na mídia, mas os alternativos, para não dizer marginais, dão longas entrevistas, por vezes destilando uma malícia que inocentemente não costumamos esperar em pessoas que se dizem religiosas. Há até um Boffe suíço que tomou a liberdade de enviar uma carta (aberta, é claro) ao colégio de cardeais, explicando a eles como devem pensar para escolher o novo Papa. Há quem pense que é Napoleão, mas esse pensa que é o Espírito Santo ou, então, o que é mais provável, a carta não se destina, verdadeiramente, aos membros do conclave. Lula apenas achou que podia palpitar como se fosse a eleição para o Sindicato dos cardeais, mas esse tal suíço quer ser o professor deles, fazendo severas advertências. Se depois de dez horas de vôo o nosso Dom Scheid, cujo forte não é a diplomacia, chamou Lula de boboca caótico, gostaria de levá-lo numa volta ao mundo e depois perguntar sobre esse suíço. Acho que faria considerações sobre o próprio e também sobre a mãe dele. E passaria a ser o meu ídolo! Nota do Editor: João de Oliveira Nemo é Sociólogo e Consultor de Empresas em Desenvolvimento Gerencial.
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