14/08/2025  01h00
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
14/11/2014 - 09h03
Uma casa na montanha
Rangel Alves da Costa
 

Na montanha, uma casa talvez não seja uma casa. Não vejo outra coisa senão um santuário, uma escada para a nuvem, uma vizinhança ainda maior com Deus, o altar dos dias dos esperançosos. Dali de cima a visão do mundo, da vida, permitindo reconhecer ao redor a imponência da criação.

Mas uma casa na montanha é muito mais. Mesmo com aquela solidão das distâncias, aquele abandono premeditado, aquele aspecto circunspecto e aflitivo daquilo que se esconde longe de tudo, uma casa na montanha é a junção do prazer espiritual com o prazer da existência. Somente percorre suas encostas e faz a subida íngreme e perigosa quem realmente deseja encontrar-se consigo próprio. E reacender a chama de sua fé.

Por tudo isso uma casa na montanha é paz, é sossego, é felicidade, é prazer, é encontro consigo mesmo, é devoção espiritual, é encantamento da alma, é alimentação do espírito com a beleza da vida. E também por isso uma casa na montanha é a possibilidade de ser melhor ouvido na oração e de ter seu braço estendido tocado pela misteriosa força ali presente. Misteriosa, porém com a face da luz.

Do alto se avista tudo ao redor, mas olhando para cima se avista muito mais. E tem gente que encontra um meigo olhar, um sorriso amigo, um belo semblante e até ouve uma voz dizendo que esteja em mim que estarei contigo, acolha a minha palavra que um dia te mostrarei a porta, queira me reconhecer no mais belo que há e te darei outro olhar para enxergar muito mais. E surge o diálogo silencioso entre o grito de esperança e aquele que sempre fala em silêncio.

Do alto dessa montanha a passagem do tempo é quase imperceptível. Somente cores mais vivas, mais fortes, ou mesmo aquelas de tênue luz e escurecimento, dizem se é manhã, dia ensolarado, entardecer, noite, madrugada gelada. Mas às vezes o sol surge à meia-noite e as estrelas brilham depois antes que a tarde chegue. Dependendo da propensão espiritual, folhas outonais passarão esvoaçando em direção ao jardim florido ali existente.

Ao primeiro sinal da manhã – e somente no alto da montanha é possível se ter uma manhã verdadeiramente surgida – ouve-se uma bela música chegando levemente dançante na brisa. Valsa, sonata, talvez um prelúdio matinal, qualquer coisa angelical e inebriante que faz a natureza inteira parar para refletir, enxergar a beleza ao redor, sentir que a maravilhosa vida também tem sua trilha sonora.

Não só ao amanhecer, mas durante todo o dia parece se ouvir compassos de flautas, violinos, pianos. Mas ao anoitecer, quando o tempo deixa que a vaguidão escurecida se alastre adiante, é que surge a mais bela das orquestras: a do silêncio. É no silêncio que se fortalece ainda mais toda a grandeza espiritual. A luz da vela apenas flameja, a brisa apenas perfuma, e o íntimo desejoso de benção se lança com as asas da fé pelos espaços.

Após o diálogo com os céus, o silêncio na montanha, ao redor e dentro da casa, continua ecoando uma orquestra deveras indescritível. E assim porque os pensamentos produzem sons, a mente chama e responde, ouve-se a voz da saudade, o murmúrio da recordação e, mais silenciosamente ainda, o grito também silencioso do sofrimento. Se uma lágrima cair será eco numa distância sem fim, se um sussurro surgir será ecoado como trovões desabando ao redor. Mas tudo em silêncio.

E ao abrir a porta que nunca é fechada, porque a casa no alto da montanha só precisa dos íngremes caminhos pelos penhascos e não de chaves e fechaduras, o passo se verá na fronteira entre aquele mundo e os outros mundos ao redor. Abaixo e além, a vida nas suas durezas quando se desce daquele mais alto dos cumes. No horizonte e mais acima, a contradição de tudo que ocorre lá embaixo. Nas distâncias e espaços o templo sagrado da força divina, nos arredores mais abaixo apenas a vida ameaçada pela descrença no poder daquela montanha.

Para o olhar essa fronteira é ainda mais angustiante. É manhã e a paz ao redor não consegue sequer acreditar que mais adiante, lá por baixo e mais distante, não existe a mesma ternura abençoada daquela montanha. Ali no alto, no cume, tudo é tão maravilhoso que se chega a acreditar que o mundo inteiro é feliz.

Mas não é assim que acontece. Mesmo ao lado, poucos procuram olhar para a montanha e seu cume, somente um pequeno número de pessoas segue pelas trilhas da salvação. A triste verdade é que a maioria sequer sabe ou procura saber de sua existência. E pessoas descrentes de tudo sempre acham difíceis e espinhentos os caminhos da montanha.

E por isso mesmo nem se esforçam para subi-la e nela encontrar a guarida para a vida inteira. Preferem viver tecendo a discórdia, compartilhando das violências, alimentando a desonra, plantando o infortúnio com o grão dos imperceptíveis pecados que se acumulam.

Que bom que todos pudessem viver essa fronteira, ter o passo e o olhar nesse cume. Mas não. Apenas alguns conseguem assegurar moradia no ponto mais elevado da terra, bem perto dos degraus que sobem aos céus. Ali talvez seja o próprio paraíso celestial.

Mas eis o mistério desvendado: Se a fé e as ações constroem no ser humano a sua merecida moradia, então qualquer casa – luxuosa ou empobrecida – poderá ser transportada para o cume dessa sagrada montanha. É a pessoa que se permite estar sempre na presença de Deus.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.