O jornalismo brasileiro opera milagres. De dentro das redações-catedrais, nossos padres-repórteres e nossos bispos-editores continuam sua árdua missão de manter santa a imagem do presidente da República a quem juraram não permitir que o exterior circundante degradado de seu governo possa um dia atingi-lo. Uma das tarefas mais comuns destes incansáveis sacerdotes é o de preparar suas mini-inquisições contra quem ouse manifestar repúdio, crítica ou desacordo em relação a Lula da Silva. A meta: não importa para onde vá o país, salvemos nosso reeleito. O mais recente alvo da comissão de salvamento mídia-eclesial é o arcebispo catarinense em missão de liderança dos católicos cariocas, Dom Eusébio Scheidt. Este alemão de humor, agora sabemos, fantástico, disse ao chegar ao Vaticano para os funerais do Papa que Lula não é católico e sim "caótico". O religioso foi curto, grosso e exibiu uma jocosidade à qual a imprensa brasileira não está acostumada. Ao brincar com as palavras e com a imagem de Lula da Silva, o arcebispo-eleitor levantou contra si a ira dos lulistas plantados na imprensa nacional. A coluna dos jornalistas Ancelmo Góis e Merval Pereira n´O Globo deram o tom predominante. Ambos consideraram a frase do cardeal uma ofensa, um desplante, um despropósito. Na seção de cartas do mesmo jornal, o editor nunca as selecionou de forma tão fácil. Das dez publicadas, todas falavam mal do crítico e o mandavam para o fogo do inferno. Curiosamente, ficamos sem saber o paradeiro das mensagens elogiosas à língua do Eusébio Scheidt. Provavelmente foram para a urna eletrônica dos documentos proibidos ou mais popularmente, para a cesta de lixo do e-mail da redação. Mas a operação de salvamento exige mais correria e vai além dos artigos e das cartas. A solução foi apelar ao velho amigo do ex-sindicalista, o arcebispo de São Paulo, Claudio Hummes [*], a fim de tentar um contraponto que atenuasse ou tornasse sem efeito o que dissera na véspera o catarinense. Antes mesmo de chegar a Roma o "papável" correspondeu. Disse que Lula da Silva é católico "a seu modo" e que está comungando "cada vez mais". Encurralado, seu par menos benevolente com a figura santa do presidente passou para a defensiva, despachando nota oficial negando a intenção de ter dito aquilo que todos bem entenderam. O ciclo "crítica - resposta - arrependimento e negação" estava assim concluído para alívio do corpo jornalístico.
[*] Incensado pela mídia pelo seu passado supostamente antiautoritário, apenas Hummes seria capaz da tarefa a ele passada pelo jornalismo brasileiro. Em épocas passadas, esta missão seria confiada a Dom Paulo Evaristo Arns, o pai espiritual dos terroristas e oposicionistas ao regime militar nos anos 70. Nota do Editor: Sandro Guidalli, 38 anos, nasceu em Lages, principal município da serra catarinense a 200 quilômetros de Florianópolis. É jornalista desde 1989, tendo prestado serviços para inúmeros jornais e publicações do país, entre eles a Folha de S. Paulo e O Globo. Foi editor do Mídia Sem Máscara entre fevereiro e julho de 2003. Depois de residir por dez anos no Rio de Janeiro, mora em Balneário Camboriú (SC).
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