Dizem que foi encontrado morto no meio do mato, após um longo período de chuva. Uma borrasca chegada sem aviso deve tê-lo apanhado, já doente e fraco. Não conseguindo encontrar abrigo, pereceu. Outros contam que Mudinho agonizou durante alguns dias antes do fim, na casa de um de seus benfeitores. Como em toda lenda, os detalhes sobre sua vida e morte fragmentam-se à medida que o tempo passa. Ninguém soube dizer qual era a sua idade, quem eram seus parentes, de onde veio, quando chegou em Prudentópolis. Mas todos que o conheceram têm histórias para contar sobre ele. Não era louco, nem débil, como muitos chegaram a afirmar. Apenas vivia numa outra realidade, sem leis, sem regulamentos e, principalmente, sem falsidade. Ao lado de outros personagens históricos de Prudentópolis, como o Papo Amarelo, Julio Manivela, Graxaim e Bilo, o Mudinho tornou-se célebre em nossa comunidade, ainda que vivesse em seu "universo paralelo". Era de uma linhagem que se costumava chamar de "bugre". Miúdo, nariz achatado, lábios exuberantes, barba rala, meio corcunda. Um índio brasileiro, era o que se deduzia. Não lembro de ter visto seu cabelo. Andava sempre enrolado em inúmeras tiras de pano, das pernas à cabeça. Mesmo durante o verão, nos dias mais quentes, aparecia com os panos, deixando à mostra somente joelhos abaixo, até as velhas botinas. Parece que em certa época também usou sapatos, tênis e outros apetrechos para cobrir os pés, mas em minha memória estão as botinas, pretas, lanhadas e furadas. Servia-se de penas e plásticos coloridos para enfeitar a cabeça e as vestes. Toda quinquilharia encontrada que pudesse passar por adereço, ele dava um jeito de engatar à cintura ou ao pescoço. E para segurar os anos que lhe pesavam sobre as costas, utilizava uma longa bengala de galho de guaçatunga. Era bem cuidado pela Maria Eugênia, que durante anos deu abrigo, asseio e comida para o nosso personagem. Dona Maria era uma dessas muitas senhoras que encontramos em nosso município, cuja bondade deveria ser anunciada na televisão, como exemplo de um ser generoso, algo que se torna cada vez mais raro à medida que vamos ficando todos cada vez mais ricos e famosos. Mas o Mudinho também era cuidado por muitas outras pessoas. Inúmeras famílias se sentiam "escolhidas" por ele como a sua favorita. Seu túmulo, no cemitério brasileiro*, ainda hoje recebe os cuidados de famílias anônimas, que no Dia de Finados o enfeitam de flores. Não tenho certeza de que o Mudinho era mesmo mudo, ou se aqueles resmungos eram dialeto guarani. Tampouco me informei de seu verdadeiro nome, se é que ele tinha um. Ele existia, e para nós isso era suficiente. A vida sem o Mudinho não teria a menor graça. Não havia hora para chegar em nossa casa. De manhã à noite, sempre era hora para ele. Sabendo-se bem recebido, não batia à porta. Ia entrando. Sentava à mesa e comia como gente da família. Ficava vendo minha mãe amassar o pão e fazer o almoço. Nunca demonstrou pressa, e o stress que hoje nos assola jamais incomodou nosso amigo. Fazia entender, com movimentos das mãos, que gostaria de comer um biscoito, um pedaço de melancia. Depois se dirigia ao depósito de batatas, sentava-se num canto e ali ficava, durante horas, provocando os que chegavam, entabulando diálogos que não poderiam ser traduzidos em palavras. Com o Mudinho, a gente aprendia a sentir as situações, a formular piadas e a contar causos sem abrir a boca. Apesar de solitário, era amado por todos. Mesmo os garotos mais malandros de nossa turma jamais foram capazes de cometer com ele algum desrespeito. Pelo contrário, protegiam-no de qualquer ação nefasta de alguma gangue estrangeira ao nosso bairro. Quase toda semana o encontrávamos no mato, ali onde hoje se localiza o Bairro dos Ricos de Prudentópolis. Seu estado contemplativo, nessas horas, deixava-nos sem ação. Se algum garoto desavisado tentasse mexer com ele, via então um outro lado do Mudinho, que cerrava os dentes e rosnava para espantar o intruso. Queria estar só, ele e a mata, numa harmonia que não admitia expectadores. Fazia extensas peregrinações em torno da cidade. Chegamos a encontrá-lo a dez quilômetros, em plena floresta. Conhecia, como nós, todos os meandros daqueles labirintos de árvores, e aventurava-se, não em busca de caça, como nós, mas de algo que transcende nossas mais profundas cogitações sobre o relacionamento entre o homem e o universo. O Mudinho era filho da América, seu herdeiro legítimo, absolutamente incapaz de feri-la, como a temos ferido. Passou por aqui em silêncio profundo. * Em Prudentópolis existem duas paróquias, uma brasileira, outra ucraniana, cada uma com seu respectivo cemitério.
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