Estamos com um pé no século XXI (onde crimes de colarinho branco vão para a prisão, enfim) e com outro pé ainda no século XVII do “L’État c’est moi”, onde um juiz carioca passeia no Porsche apreendido do Eike. É como se vivêssemos numa sociedade “bipolar” que oscila entre os extremos da euforia tecnológica futurista e os hábitos de uma mentalidade “colonial”, atrasada, deprimente pelo anacronismo em contraste com o nosso século, de modo surreal. Por um lado chegamos ao estágio mais avançado da civilização, vislumbrando o fim da impunidade decorrente do poder econômico, por outro resistimos com hábitos de quatro séculos atrás, do tempo do Absolutismo na Europa, do Brasil Colônia e das Capitanias Hereditárias, do tempo em que o Estado tinha donos e isso era considerado normal. Que o seu ato era “normal” foi justamente o que alegou o juiz carioca flagrado passeando com os bens apreendidos. A consciência da “coisa pública” (res publica) que dá origem ao conceito de governo “republicano”, em benefício da sociedade e não dos próprios governantes, se impregnou em nossa intelectualidade mas ainda não em nossos hábitos. A população que se “acostumou” ao uso da máquina pública pelo Poder Executivo e aos aumentos autoconcedidos pelo Poder Legislativo vê agora um membro do Judiciário flagrado usufruindo de um bem apreendido, levando ao descrédito nas instituições e até na própria democracia – daí os setores falando em volta do militarismo, sem nem corar. O Brasil tem donos desde as Capitanias Hereditárias e governo após governo continuamos em lutas civilizatórias para “desprivatizar” o uso da ‘res publica’, enquanto outros querem retroceder e privatizar tudo de novo. Mas como não estamos mais no Brasil Colônia, passear de Porsche imaginando que ainda vivemos naqueles tempos não dá mais certo. No século XXI as leis são para todos, pensar com a mentalidade dos “senhores” achando que está ao arrepio da lei é anacrônico. Se antes havia senhores e escravos, se era “normal” a mentalidade de castas, hoje o próprio corporativismo está fora de moda e a ética exige que a lei valha para todos. Para lembrar que não estamos na Colônia passeando de Porsche, foi exemplar a Nota da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – de caráter didático para o juiz carioca. A AMB “esclarece que esta conduta é vedada a qualquer magistrado e, em hipótese alguma, condiz com a postura usual e ética dos juízes brasileiros”. A AMB fala em nome de 14 mil juízes brasileiros que foram atingidos pelas declarações do colega carioca de que aquilo era “normal”. Teria sido normal esse passeio de Porsche nos tempos do Brasil Colônia, mas pensando bem naquela época também não seria possível, pois ainda não havia Porsche. Nota do Editor: Montserrat Martins, colunista do Portal EcoDebate, é médico psiquiatra, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e presidente do IGS – Instituto Gaúcho da Sustentabilidade. Fonte: Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br)
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