A discussão sobre como a importação de um sistema de precedentes se relaciona com os enunciados da súmula da jurisprudência dominante dos tribunais, essa forma tipicamente brasileira de apresentar a visão da jurisprudência, é polêmica e precisa ser compreendida dentro deste cenário jurídico atual e com novas regras que serão emanadas em breve com o novo Código de Processo Civil (CPC). Não se pretende negar a importante mutação pela qual o nosso sistema jurídico vem passando, de forma a sobrelevar a importância da jurisprudência como “fonte do direito”. Muito menos se pretende negar a importância da sistematização da jurisprudência dos tribunais, mas é preciso entender que súmula não é, e nunca poderá ser visto como um precedente judicial. É claro que a discussão sobre precedente judicial precisa ser mais profunda, mas podemos elencar, como elementos gerais do precedente judicial, em qualquer das tradições (Civil Law ou Common Law): – ser uma decisão judicial com (algum grau) de vinculatividade; – possuir nos seus fundamentos a regra de direito que transcende o caso concreto (ratio decidendi); – ser reconhecida como tal por órgão distinto daquele que a proferiu. Não há como falar de precedente judicial sem ter a noção de que este é uma decisão proferida no âmbito de um processo jurisdicional, julgando um caso concreto submetido ao crivo judicial pelas partes. Outrossim, não é qualquer decisão que é considerada como precedente, é preciso que ele possua, pelo menos em tese, capacidade de vincular (binding authority) ou, ao menos, persuadir outros julgadores. Se é verdade que nós estamos engatinhando em termos de precedente judicial, também na Inglaterra a noção de precedente não é tão antiga quanto o Common Law, remonta apenas ao século XIX a regra de precedente (rule of precedent) que impõe aos juízes, em dadas condições, seguirem as regras de direito decorrentes de julgamentos precedentes de outros juízes. Nos Estados Unidos da América há uma regra semelhante (stare decisis), mas que não funciona nas mesmas condições e não possui o mesmo rigor que da regra inglesa do precedente. O precedente é uma regra de direito que é extraída da fundamentação da decisão e passa a constituir como regra de solução de todos os casos que lhes forem análogos. Esta regra de direito é conhecida nos sistemas da tradição do Common Law como ratio decidendi, e com este mesmo nome tem sido internalizada em nossa cultura e praxe jurídica. Obviamente que a descoberta da razão de decidir, da regra jurídica extraída do procedente, deverá levar em conta a descrição dos fatos (relatório) e a conclusão a que se chegou (dispositivo), mas certamente é na fundamentação da decisão paradigma que se irá extrair o precedente capaz de vincular os demais julgadores em casso análogos a serem julgados no futuro. Inexiste autoprecedente exclusivo. Ainda que uma decisão sirva de precedente para o mesmo órgão judicial, como por exemplo as decisões do STF, que são citadas e reconhecidas como tal pelo próprio STF, o precedente é como regra o reconhecimento da força vinculante de uma decisão anterior, por um outro juiz que posteriormente a reconhece como tal, interpretando e extraindo a regra de direito (ratio decidendi) e lhe aplicando para o caso em julgamento (caso futuro em relação a decisão tida como precedente). A súmula surge no Brasil na década de 1960, num STF sufocado pelo acúmulo de processos pendentes de julgamento, com a sua grande maioria versando sobre questões idênticas, através de uma alteração regimental ocorrida na sessão de 30/08/1963, fruto de um enorme trabalho da Comissão de Jurisprudência de então, composta pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Pedro Chaves e Victor Nunes Leal, este último relator da matéria e grande mentor da ideia de se criar a súmula da jurisprudência do STF. A edição da súmula da jurisprudência do STF, sob relatoria do Ministro Victor Nunes Leal, se dá formalmente na sessão de 13/12/1963, com a edição de muitos enunciados, mais precisamente os 370 primeiros enunciados. É, pois, a súmula um rebento das resoluções e dos regimentos internos dos tribunais. Ocorre que, boa parte da doutrina, e mesmo o novo Código de Processo Civil (CPC), tratam o enunciado da súmula como um precedente, algo que ele não é. O capítulo que o novo CPC reservou aos precedentes fala muito mais dos enunciados da súmula da jurisprudência dominante do que propriamente de precedentes judiciais. É preciso desmistificar a noção de que enunciado de súmula é um precedente. Enunciado de súmula não é precedente porque não é decisão judicial, não tem fundamentação, se apresenta como texto geral e abstrato criado para o futuro, desconectado com os fatos e os casos concretos dos precedentes que lhe são subjacentes. Existe um enorme déficit qualitativo em termos de cognição e compreensão judicial entre o enunciado da súmula e um verdadeiro precedente judicial, e pautar um sistema de precedentes principalmente em enunciados é um equívoco crasso, justamente pela precária estrutura e operacionalidade dos enunciados e o seu completo descompromisso com os fatos, com o caso concreto e com as razões de decidir desses mesmos casos concretos. É preciso repensar as questões e defender um sistema de efetivos precedentes distinto que está se formando no Brasil, que possui no seu epicentro um “precedente” que, assim como a jabuticaba, só existe e só é considerado precedente no Brasil. Nota do Editor: Maurício Dantas Góes e Góes é sócio fundador do escritório Lapa & Góes e Góes Advogados Associados, professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFBA e mestre em Direito Público pela UFBA.
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