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Opinião
29/04/2005 - 13h01
O menino que nunca andara de carro
Lula Miranda - Agência Carta Maior
 

Olhava o mundo lá fora. Gosto de olhar a vida lá fora, principalmente nos dias de chuva. Gosto de sentir o cheiro de molhado que exala da rua. Gosto de perceber os transeuntes fugindo da chuva - uns às carreiras, outros como que se esgueirando por entre os pingos d’água. Aquela chuva, daquele dia, era uma chuva bonita, de pingos grossos e cheiro intenso.

Foi aí que pude notar, do outro lado da calçada, um moleque de rua, com seus 9 ou 10 anos, bem magrinho, que, diferente dos demais transeuntes, não parecia lá muito incomodado ou preocupado com a chuva. O menino também se esgueirava por entre os pingos, mas de um jeito todo peculiar, como se estivesse dançando um rap, ensaiando uns passos de streat dance. Outras vezes, dava passadas tão longas que parecia brincar de amarelinha com as poças de chuva e, em outros momentos, abria a boca em direção ao céu como se tentasse comer os pingos de chuva - como a gente faz com grãos de amendoim ou milho de pipoca. Não, a comparação com a cena de Cantando na Chuva não lhe faria justiça. Talvez fosse mais apropriado lembrar das crianças do Brejo da Cruz, da canção de Chico Buarque - aquelas que se alimentavam de luz.

E aquele menino ficou ali na rua, ainda por mais alguns instantes, todo prosa, comendo pingos de chuva e ensaiando seu alegre bailado. Depois, quando a chuva tornou-se mais intensa, parou e buscou abrigo no ponto de táxi, já que não havia nenhum taxista por ali mesmo - afinal, nos dias de chuva não se encontram taxistas nos pontos de táxi ou nas ruas.

Ficou ali, sentado na bancada daquela parada de táxi, que era, por sinal, território exclusivo dos motoristas - e ai daquele que ousasse "invadi-lo"! Essa sempre foi uma lei respeitada por todos os moleques daquela rua. Mas aquele menino, ao que parece, ousara, naquele momento, desafiar tão sagrada norma. Talvez por simplesmente desconhecê-la por completo, por não estar, como toda criança, muito atento a essas leis e normas do mundo dos adultos. Talvez porque tão-somente necessitava abrigar-se um pouco da chuva. Só por isso.

Ficou ali sentado, de modo solerte, balançando seus "cambitos". Vez ou outra esticava bem a perna e segurava a ponta do dedão de seus pés descalços. Vez em quando, levantava, ia até a ponta da calçada, de onde podia alcançar com as mãos a água que escorria pelo telhado do abrigo e ficava ali, prazerosamente, curtindo a água escorrer em suas pequenas mãos, por entre seus pequeninos dedos.

Estava sentado, balançando as pernas tranqüilamente como se estivesse num balanço, quando percebeu que estacionava, naquele momento, um táxi no ponto - certamente era algum motorista chegando de alguma corrida. Percebi o menino, antes fagueiro e todo "senhor de si", encolher-se diante da presença, diante da chegada do "dono do pedaço".

Esperto, ele já havia levantado-se quando então o taxista lhe dirigiu algumas palavras que pareceu tranqüilizá-lo. O homem indicou-lhe gentilmente o banco, ao que parece convidando-o a se sentar ao seu lado. E ficaram ali, os dois, homem e menino, ainda por um longo instante, a prosear, como se fossem dois adultos, como se fossem velhos amigos, como se fossem dois iguais.

O que teria conversado aquele homem com aquela criança? Talvez perguntado onde estariam seus pais? Se estudava, sua idade, se tinha irmãos, onde morava, pra que time torcia? Talvez tenha feito essas e outras perguntas. Quem saberia dizer? Quem saberia dizer, com certeza, sobre o que falavam aqueles dois?

Passaram-se mais alguns minutos e os dois, homem e menino, ali, conversando. Chegaram outros motoristas, que também se uniram àquela prosa. Quando um deles, o que havia chegado primeiro, perguntou-lhe em voz alta, isso eu pude ouvir, qual o seu grande sonho. "Andar de carro" - respondeu-lhe o menino de pronto. "Não seja por isso, esse sonho você vai poder realizar" - disse o taxista. "Vamos. Vou te levar pra dar uma volta" - convidou, já abrindo a porta do carro.

Ao que o menino entrou todo desconfiado, bem cabreiro, no táxi. Desconfiança essa que logo se dissipou ao ouvir o tamborilar dos pingos de chuva no teto e vê-los escorrer pelos vidros do carro. Ao ver a paisagem, um tanto embaçada, passando rápido, como um filme cheio de cores, diante de seus olhos. A desconfiança e o medo agora eram pura alegria e encantamento. Como era bom andar de carro.

Na verdade, e isso ele confessaria mais tarde ao "tio" taxista, ele já havia andado de carro, sim. Já havia andado, algumas vezes, na viatura da polícia, nas vezes em que fora recolhido ao S.O.S. Criança. Mas aí ele andava lá no fundão, no escuro porta-malas, de onde mal conseguia ver, pelas frestas, a paisagem. Aí era uma outra viagem. Nada comparável, portanto, a andar naquele "carrão" de bacana, último ano e modelo, e ainda com direito a "motorista particular".

De fato, e quem há de duvidar disso, aquela pobre criança nunca houvera andado de carro. Pelo menos até aquele dia de chuva. E a partir do olhar do poeta.

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