'A morte não me assusta. Os perigos estão na vida. A morte é um descanso'. Há algum lusófilo que nunca tenha ouvido estas palavras ditas por Manoel de Oliveira em entrevistas divulgadas aqui e acolá? E como ele, que se alimentava de cinema, não cansava de trabalhar para a realização dos seus intermináveis projetos fílmicos, a nossa fantasia fazia-nos já quase acreditar que não morreria nunca o velho cineasta português... Mas, afinal, nós o perdemos neste início de abril (mês primaveril, tão auspicioso em Portugal). E agora até já nos parece oracular o seu último filme, o curta-metragem O Velho do Restelo, estreado recentemente. Com efeito, em 2014, pouco antes de completar 106 anos de idade, Oliveira reuniu num jardim do Porto, ao lado da sua própria residência, os seus mais diletos atores, todos muito bem caracterizados como velhos – Luís Miguel Cintra para interpretar Camões; Ricardo Trêpa para fazer de Miguel de Cervantes; Mário Barroso para encarnar, mais uma vez, Camilo Castelo Branco; e Diogo Dória para representar Teixeira de Pascoaes –, e extraiu de obras literárias – o célebre episódio do Velho em Os Lusíadas, o D. Quixote de Cervantes e O penitente de Pascoaes – um retrato da alma ibérica apreendida na sua essencial ambiguidade de anjo e bruto, mística e sensual (como Teresa de Ávila), fatalmente movida pelo desejo de amplidão: ora atraída pelos mares ora pelos tórridos areais do Saara. O Velho do Restelo, que tem quase a mesma duração da primeira película do cineasta – Douro, faina fluvial, de 1931 – e que, de certo modo, também evoca as “litanias do fogo e do mar” – é este o tema, convém lembrar, da música para piano que Emmanuel Nunes compôs, em meados da década de 1990, para aquele primeiro filme de Oliveira –, parece fechar um longo ciclo, adotando os mesmos procedimentos formais que nos habituamos a ver nos filmes desse experiente realizador, mas ao mesmo tempo distinguindo-se das películas anteriores – muito marcadas, quase sempre, por fina ironia – pela notação de um tom sensivelmente melancólico. Afinal, o último filme do mestre fala de derrotas coletivas como a de Portugal na Batalha de Alcácer-Quibir e a da Espanha quando da perda da Invencível Armada. E fala também da velhice como uma espécie de derrota individual. Teria o mestre, por pressuposto, que falar de derrotas é condição sine qua non para definir a alma ibérica... ou mesmo, em sentido lato, a alma humana? Mas esperem!... Não é só disso que fala O Velho do Restelo. Bem à maneira de Manoel de Oliveira, é de artistas e de arte que o filme quer, sobretudo, falar. É como se, pressentindo finalmente a aproximação do avejão – evoquemos aqui ainda outro escritor, Raul Brandão, cujo drama O Gebo e a Sombra Oliveira adaptara, em 2012, para o grande écran –, Manoel de Oliveira vertesse uma última lágrima e se preparasse para adentrar, com os olhos fitos em Camões, Cervantes, Camilo e Pascoaes, no panteão dos imortais. Assim seja! Nota do Editor: Renata Soares Junqueira é professora de Literatura Portuguesa na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp do Câmpus de Araraquara.
|