Quando me encontro com meus irmãos sempre passamos horas recordando episódios da nossa infância. É aquela conversa longa de tapioca mordeu beiju. Nelas recordamos sempre minha avó paterna. Ela nunca frequentou nenhuma escola. Já casada e com filhos foi que o marido lhe ensinou a ler. Mas sempre foi uma pessoa de idéias próprias, engraçada e muito ferina. Quando pensava em algo, dizia, não guardava conveniências. Já idosa, mas metida a independente, tanto fez que um tio meu construiu um quartinho tipo apartamento nos fundos da casa dele para ela. Era a toca da minha avó. Nós, seus netos, sempre íamos lá, tomar a bença e conversar com ela. Eu era o mais radical e arengueiro. Nessa época com quinze anos já era metido a comunista. Um dia na porta do apartamento dela, ela sentada numa cadeira de balanço e a gente rodeando-a eis que pintou na esquina um aleijado se arrastando em cima de uma borracha de pneu. Fui logo dizendo: - Veja vó, aquele pobre coitado se arrastando num pedaço de borracha enquanto fulano, sicrano e beltrano, ladrões, bandidos, safados estão com saúde, ricos e de copo de uísque na mão. Isso é um absurdo! A minha avó riu e então me disse séria com aquela certeza dos convictos e que realmente acreditam no que dizem: - Deixe de besteira, menino. Aquele aleijado – e apontou para o pobre coitado – está apenas pagando o que fez de ruim na vida anterior, ele pintou e bordou. Está pagando o que fez de ruim. Aqueles que você diz estarem com saúde e ricos mas são desonestos e ruins, a batata deles está assando, vão morrer e voltar para se arrastar num pedaço de borracha. Mais não disse e eu fiquei calado. Ela acreditava nisso. Eu não, mas não adiantava contestar, vó falou, tava falado, senão os croques comiam nas nossas cabeças.
|