Canta, Aznavour, das profundezas da imortalidade, enquanto continuo detonando por aqui os meus petardos. Estou pensando nos juízes, os seres mais extemporâneos que conheço. Caíram os reis, caiu o nazismo, o feudalismo caiu, mas a marca da ditadura medieval dos juízes permanece intocável, em sua soberba. Que pode haver de mais antiquado, injusto e inadequado que um homem com poder decisório sobre crimes e violações que não presenciou? Somente a tessitura ainda mais antiquada do nosso bordado social pode justificar a existência dos juízes, e, à sombra de seus mantos obscuros, os homens-roedores-filhos-do-cão. As pessoas em geral acreditam tanto na instituição judiciária, que ficam admiradas de que alguém conteste a existência dos magistrados. Porém, é preciso registrar na ata e nos autos que, antes do respeito a qualquer autoridade, vem o direito de construir nossas próprias idéias a respeito do que quer que seja. Eu não aceito e não admito a autoridade dos juízes, bem como a de qualquer autoridade constituída, e não venham dizer que sou anormal e perigoso. Eu não mato sequer as aranhas da minha casa. Prefiro tocá-las com a vassoura de volta ao jardim. Mas tenho e mantenho a prerrogativa da independência entre os poderes, o juiz com seu poder, eu com o meu, e se quiser me prender por desacato, que mande os soldados, e eu me viro com as minhas pernas. A escravidão intelectual surge primeiro na escola, onde o aluno enfrenta valores estranhíssimos àqueles forjados à custa de sua experiência pessoal. Surge, portanto, quando estamos completamente desarmados. Aí é que desaprendemos a arte de ser livres. E ainda se perguntam os pais e estudiosos "por que os adolescentes dão tanto incômodo?". Ora, tente você, cavalo selvagem, transformar-se numa tartaruga, e veja como dói. Sei que os novos filósofos do ensino estão afinados com o holismo e essas coisas maravilhosas, e que uma nova consciência, humana e dinâmica, está formando os novos professores. Mas basta dar uma olhada nos livros escolares para perceber que a escola permanece como um espaço incômodo, considerando o andamento natural da vida de uma criança. Ali o indivíduo aprende o que é o mundo e o que são as coisas do mundo, enquanto sufoca e destrói o seu modo singular, único e inimitável de enxergar o mundo. O universo é vasto de conhecimentos, e a humanidade é incapaz de juntar um punhado deles que não se dissolvam dentro de uma década. Faz tempo que a ciência admite serem efêmeras suas descobertas. Mas o aluno que não apreende a matéria, cuja conceituação é sempre provisória, continua sendo condenado. Nenhum jovem está preparado para esse tipo de violência. Os psicólogos chamam isso de "trauma", uma espécie de doença induzida muito difícil de curar. As ruas brasileiras estão cheias desses condenados gratuitos, que levaram um pelotaço na cabeça na época em que ainda admiravam e se deslumbravam com as maravilhas do universo. Depois daquilo, enveredaram para essa condição parda de malandros de toda espécie, estupradores, assassinos e seqüestradores, que a sociedade delicada e boa-vivã detesta e enfia na cadeia. Obviamente, aí se juntam outras causas, mas há de se admitir que a maioria dos nossos bandidos foram reprovados pela escola antes de fazerem sua opção profissional. Que sabem os mestres sobre a vida de seus aprendizes? Como podem julgar a quantidade de conhecimentos absorvidos? Pois que há de mais subjetivo, tão impossível de medir, quanto o conhecimento? Pelo que sei, até o momento nenhum genial filósofo - ou o cientista com seus tubos de ensaio - conseguiu definir o que seja isso, conhecimento. A escola faz como o juiz, esse rei de pedra, que julga à distância, sem conhecer os verdadeiros méritos do assassino - que bem pode ser um inocente - ultrajando a própria norma jurídica da presunção da inocência. Se a escola não admite suas próprias limitações, como poderá conceber a possibilidade de que seus alunos "vençam na vida", apesar de suas limitações pessoais? Pergunte a um mestre cientista, ao Papa, ao maestro da Filarmônica de Berlim, o que eles sabem sobre a vida e seus fenômenos. Caso um deles garanta que detém 0,1% de todo o conhecimento disponível no mundo, é bom que seja internado, na ala das patologias graves. Para construir um computador foram necessárias várias equipes de dezenas de engenheiros - contratados, cada um, por sua suposta "genialidade" - visto que uma pessoa só não seria capaz de armazenar todo o conhecimento que se encontra dentro da caixinha. Somos limitados, dentro do cerco em que a escola nos enfiou. O conhecimento armazenado nas enciclopédias não cabe em nossa cabeça, portanto, nada mais absurdo que condenar aqueles que parecem saber pouco sobre esses saberes. Somos ilimitados, a partir do momento em que rompemos o cerco, mas isso nenhuma escola parece interessada em mostrar "como fazer". A escola está ali para dizer como funciona o sistema, para elogiar suas virtudes. Cada pessoa que se liberta, só o faz porque "viu" que o sistema humano não a representa. Fora do barco é frio, desconfortável, uma solidão dos diabos. Mas somente aqui, mordidos pelos tubarões, somos capazes de compreender o que é isso que pulsa, que treme, que sente o mundo na vibrança de seus carrilhões, e que percebe, enfim, o que é isso em que "Eu" se constitui.
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