Ser corcunda não é fácil. Até a palavra soa pejorativa. Muita gente não sabe, mas corcunda é o mesmo que corcovado. E foi assim, consultando um dicionário para saber um pouco mais de mim mesmo – um corcovado de nascença, que me veio a ideia para ganhar a vida. Ou melhor, que me permitiu sobreviver, mal e porcamente, graças ao famoso cartão postal carioca, onde batia ponto das 8 da manhã às 10 da noite. Incluindo sábados, domingos e, principalmente, feriados. Os turistas tiravam fotos minhas de perfil, em posição análoga à do Corcovado, e depois pagavam pelo monóculo. Parecia algo sádico, com requintes de humor negro, e a intenção talvez fosse essa mesmo. Era uma humilhação assumida e consentida, por ser meu ganha-pão. Quantos bocós eu vi e ouvi exclamando, cheios de incabível orgulho, após tirar minha foto junto ao meu gêmeo de pedra: “Ha, ha, ha, ha, ha, ha! Deixa o pessoal lá do escritório ver isso!”; ou então: “A Maria das Graças não vai acreditar... ha, ha, ha, ha, ha, vai se matar de rir com essa!”. Somos os dois parecidos, e ao mesmo tempo opostos. O Corcovado lindo por natureza, e eu horrível por um descuido dela. Lamentações à parte, assim se passaram alguns anos de temporada no célebre morro. Até que uma crise econômica brava se abateu literalmente em minhas costas, e ninguém mais queria torrar seu contado dinheirinho com retratos de corcunda. Havia possibilidades esteticamente mais interessantes para gastá-lo, ainda mais em se tratando da Cidade Maravilhosa. Estava eu nesse estado de pré-miséria quando o Totonho das Mercês, colega de turma de Crisma e morador do Realengo, veio com a redentora solução: ir para Paris e encarnar o famoso Corcunda de Notre Dame na porta da Catedral de mesmo nome. Pesquisando, descobri que Notre Dame é a segunda atração mais visitada da capital francesa, só perdendo para a Torre Eiffel. Em número de turistas/dia, deixava o Corcovado no chinelo. Assim resolvido, comprei minha passagem de ida e segui a caracterização do personagem, conforme o livro de Victor Hugo. Depois montei uma tabela de preços e a afixei, obviamente, sobre o meu defeitinho congênito. O faturamento tem dado para o gasto, não posso me queixar do apartamento de 3 quartos no melhor ponto de Saint German, do Citroen 0km e da casa de praia em Cannes. Seguem abaixo meus honorários, sem desconto para grupos. · Foto do corcunda sério: 1 euro. · Foto do corcunda sorrindo: 1 euro e meio. · Foto junto com o corcunda sério: 3 euros. · junto com o corcunda sorrindo: 4 euros. · Foto ou vídeo de criança na carcova do corcunda: 7 euros. · Foto ou vídeo de criança maiorzinha ou de marmanjo anão na carcova do corcunda: 8 euros. · Voltinha em torno da Catedral montado no corcunda: 14 euros. · Subida ao campanário de Notre Dame, em visita guiada pelo corcunda: 20 euros. · Corcunda Strip Tease, toda quinta às 23h no Moulin Rouge: 35 euros por pessoa (adesões com pagamento antecipado na barraquinha de crepe ao lado da igreja). · Algo mais com o corcunda, em moita discreta no Bois de Bologne: 110 euros.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
|