Chico Buarque não sabia, mas quando apresentou ao público a sua Ópera do malandro (1978) estava em realidade fazendo o réquiem desse curioso e fascinante tipo. Embora o termo seja de origem italiana, foi aqui no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, que o malandro se firmou. E se firmou no começo do século 20, quando começava a surgir no Brasil uma classe trabalhadora. O que não aconteceu por acaso: o malandro é a negação do trabalhador. Mais: como diz o antropólogo Roberto DaMatta, o malandro é uma espécie de vingador do trabalhador, sempre pobre, sempre lutando com dificuldades. Malandragem é, em última análise, uma forma de escapar à bíblica condenação do "ganharás o pão com o suor do teu rosto": quem trabalha vive no miserê, diz o malandro, o negócio é ser esperto. Não foi o malandro quem inventou a esperteza, o jeitinho, a sacanagem, que o Brasil conhece desde os tempos de colônia. Mas o malandro fez disso um estilo de vida. Que se refletia até na sua própria indumentária: o imaculado terno de linho branco, o chapéu de banda, o lenço no pescoço. O primeiro item era particularmente importante: significava que o malandro jamais se meteria numa fábrica ou numa oficina, jamais se exporia à graxa ou a sujeira. E mais, tinha quem lhe lavasse o terno. Pergunta: e por que o malandro não trabalhava? Em primeiro lugar, porque simplesmente não acreditava na ascensão social através do trabalho. Mas não era só questão de crença, era vocação: malandragem era algo embutido no genoma do cara. Desta maneira, diz Antonio Candido, o malandro criava, em termos de moral, uma espécie de terra de ninguém, onde tudo, ou quase tudo, era permitido. Não que o malandro fosse um bandido; o dinheiro que ganhava (por exemplo, explorando mulheres) não era limpo, mas ele não assaltava, não seqüestrava, não roubava. E o malandro era boêmio, freqüentador da noite e não raro talentoso músico ou compositor. Como disse Cartola, aquele da Mangueira: "Malandro gosta de farra, mulher e bebida, isto é natural. Já ladrão e maconheiro, são bandidos; disso eu tenho vergonha." Nos anos 60, o termo "malandro" desaparece da imprensa e é substituída pelo muito mais ameaçador "marginal". E isto acontece na medida em que as condições de trabalho vão mudando. De um lado, o país se industrializa e se urbaniza, surgem grandes indústrias; mas, de outro lado, não há emprego para todos. Ser malandro já não é uma opção; é, muitas vezes, uma fatalidade. E uma fatalidade sombria. Uma coisa é não trabalhar por "vocação"; outra coisa é não trabalhar por falta de oportunidade, o que acontece com a maioria dos desempregados. Não temos de lamentar o desaparecimento do malandro. Era uma inevitabilidade histórica e nenhum terno de linho branco (coisa que aliás ninguém usa mais) o preservaria. Mas temos de lamentar, sim, as agruras e as incertezas pelas quais passam os trabalhadores. Inclusive aquela de ver o seu dia, normalmente feriado, caindo num domingo.
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