Diante da repercussão altamente negativa da baianada que cometeu com essa tal cartilha do "Politicamente Correto" - aquele livro negro que tentou judiar ainda mais do idioma criado por gente como o Camões, aquele galego caolho que foi parar no Vietnã -, o governo viu a coisa preta e optou pela revisão do Manuel, perdão, do Manual, dando uma de malandro carioca ou de raposa mineira. Menos mal. Pior seria se resolvesse fazer uma gauchada e mantivesse o libreto digno de figurar numa das muitas edições do Febeapá - Festival de Besteiras que Assolam o País, coletânea do inesquecível e nunca demais citado Sergio Porto (que adotou o pseudônimo politicamente incorreto de Stanislau Ponte Preta). No entanto, a mera revisão do Manuel, perdão, do Manual, anunciada pelo ministro Nilmário Miranda, já constitui um acinte. Nós, que não vamos ao Maracanã chamar jogador de futebol de "macaco" ou de "negrito de mierda", pois isso é safadeza contra um ser humano, mas que prezamos a infindável contribuição que o Politicamente Incorreto deu à literatura brasileira e universal, não vamos agir como aqueles alemães nazistas e lançar na fogueira a antologia da falta do que fazer que inventaram. O governo, que foi o autor da barbeiragem, deve ter imaginado que enfiar o rabo entre as pernas seria coisa de viado (com i, por favor). Vem, então, com esse papo de cerca-lourenço de que o documento apenas nasceu para convidar os cidadãos a uma reflexão. Quer alterar o texto, achando que com isso resolve tudo. Esses paulistas branquelos que estão no poder há não sei quantos governos acham que são os reis da cocada preta. Será que os lourenços vão reclamar? Só estou me metendo nessa conversa, que já teve participantes ilustres, porque o governo imprimiu 5 mil cartilhas dirigidas principalmente a formadores de opinião, inclusive nós, jornalistas. Disseram, entre outras coisas, que estamos meio que proibidos de chamar de servidor público os funcionários públicos. Parece mesmo coisa de funcionário público que precisou gastar uma verba e não tinha com o quê gastar... Mandasse a tal verbinha das 5 mil cartilhas para a Saúde, que tanto precisa. A não ser quando a gente escreve os textinhos que nos rendem o pão que o diabo amassou de cada dia, preferimos em nosso dia-a-dia usar a língua inculta e bela que herdamos dos portugas, filha bastarda do Latim Vulgar (e põe vulgar nisso, aqueles romanos adoravam uma baixaria!). Melhor do que nos submeter ao Índex do seu Perly e do seu Nilmário, responsáveis pela relação elaborada pelo professor da UnB Antônio Carlos Queiroz. Estou com o escritor João Ubaldo Ribeiro, que enxergou totalitarismo nessa iniciativa. A gente nem se chateava tanto quando a censura interna do Jornal do Brasil ou do Globo nos proibia de escrever palavras como camponês ou campesino. Esta última, então, nem nos preocupava, por ser estrangeira. O pessoal da Redação brincava com isso. Vamos usar, então, campônio ou rurícola? Ficou estabelecido que se o camponês fosse pobre ou assalariado, o certo seria lavrador. Se fosse dono de uma quantidade maior de terra, o melhor seria agricultor ou fazendeiro. Latifundiário, jamais, isso é coisa de comunista! E o pior que era mesmo. Ficamos assim, então, e nunca mais ninguém caiu na tentação de sacanear o jornal ou a ditadura militar falando dos camponeses. Pior do que isso, só falar que os homens ("zomes") eram gorilas. Nem falo da literatura, porque disso já se falou bastante. Imagine o estrago que essa cartilha causaria na música se fosse lançada e vingasse no tempo do Getúlio Vargas!? Negro nascido em Juiz de Fora, o grande compositor Geraldo Pereira é autor de sambas maravilhosos, entre os quais "Escurinho" ("O escurinho era um escuro direitinho / mas só que tinha a mania de brigão / parece praga de madrinha ou macumba...") e "Escurinha" ("tu tens que ser minha / de qualquer maneira / te dou meu barraco, te dou meu boteco / que tenho no Morro da Mangueira..."). Pois é, a Censura do Politicamente Correto proibiria essas duas jóias. Tasca o "Judia de mim", do Paulinho da Viola! Tasca o "mulato inzoneiro" da Aquarela do Ari Barroso! Tasca a "Mulata Assanhada" do Ataúlfo Alves! Tasca a "Nêga do cabelo duro" de David Nasser! E se chegarmos mais perto dos dias que vivemos, tasca também o Tim Maia, por ter cantado que "vale tudo, só não vale dançar homem com homem e nem mulher com mulher"! Tasca tudo e joga na fogueira, que está queimando parte importante da literatura universal. Viu aquela página voando? Falava no judeu Shylock, de Shakespeare. Aquela outra, no Avarento do Molière. Tudo papel pegando fogo e sendo levado pelo vento. Ainda bem que tudo não passou de falta do que fazer. Acabou em pizza. Ô cambada de funcionários públicos, vão lavar uma louça, pilotar um fogão ou encarar um tanque! Nota do Editor: José Sergio Rocha é jornalista.
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