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SEÇÃO
Crônicas
12/05/2005 - 06h01
Da cidade, suas virtudes e dissabores
Vany Paiva - Agência Carta Maior
 

Ainda me impressiono com a vida nas cidades. Nasci no Rio de Janeiro e por aqui vivo há 27 ininterruptos anos. Sou dessas cariocas orgulhosas por morar numa cidade onde a maioria das pessoas paga para passar as férias. Não moro perto do mar, é verdade. Mas também não fico tão longe dele assim. Ao contrário de muitos cariocas que conheço, não me incomodo com os clichês que ilustram a cidade. Gosto do Redentor, do Corcovado, do bucólico bairro da Urca, da babel que é Copacabana, da velocidade das pistas no Aterro do Flamengo, dos aplausos ao pôr-do-sol no Verão de Ipanema, dos camelôs da Uruguaiana, da mitologia suburbana que cerca a Zona Norte e da pretensão modernosa da Zona Sul. Gosto do trânsito cultural que trafega entre os túneis Rebouças e Santa Bárbara.

Fico muito à vontade dentro desse cartão-postal, mesmo conhecendo os bastidores da bela cena. Os malabares nos sinais, as praças ocupadas por pedintes, os tiros escutados ao longe, as casas que se amontoam nos morros são conseqüências inexoráveis dessa vida que se tenta levar em aglomerados que chamamos cidades. Mesmo dentro de um contexto de aparente caos irrecuperável, ainda me permito encantar por esta desordem urbana. É admirável que ainda não tenhamos nos matado mutuamente por tanta proximidade, tantos esbarrões e cotovelos nas ruas. É notável que se respeite faixas de pedestres, pontos de ônibus, estacionamentos pagos, porteiros eletrônicos, ruas interditadas, a casa alheia.

Certamente, é discutível que haja tanto respeito. Diariamente, a imprensa nos informa que tiroteios levam pânico a moradores de Vila Isabel, assaltantes de terno roubam churrascaria na Ilha do Governador, cabo é expulso da PM por envolvimento na chacina da Baixada. Isso, sem contar, é claro, com os pequenos efeitos colaterais de todos os dias: furtos, seqüestros-relâmpagos, engarrafamentos desnecessários e filas de toda ordem. Em bancos, hospitais e em épocas de matrículas escolares. A despeito das ruínas, prefiro observar os monumentos. E, como a cidade não cabe em si, há sempre mais cidade por vir. Com ela, mais efeitos colaterais chegam à cena. Prédios são construídos, carros são fabricados e alternativas subterrâneas são aventadas, no sentido de comportar esse tanto de humanidade que habita os asfaltos.

Coladinha ao edifício onde moro há mais de uma década, havia uma casa, a única sobrevivente dentre o mar de arranha-céus que inundam minha rua. Era uma dessas casas que poderiam servir de locação para qualquer minissérie de época, dada sua grandiosidade e bons tratos. Uma família morava ali. Imagino que uma família com filhos adolescentes, já que, de tempos em tempos, festas bastante barulhentas costumavam roubar o silêncio deste bairro tranqüilo onde vivo. Em certa noite de agradável embriaguez, cheguei mesmo a tentar penetrar num destes encontros festivos, sob o falso pretexto de ser síndica do prédio ao lado que, incomodada com o turbilhão sonoro, dispunha-me a averiguar as condições da festa. Num lampejo de sobriedade, fui impedida de levar adiante a idéia.

Hoje, arrependo-me por não ter sido ousada o bastante para, enfim, vestir a fantasia de penetra e adentrar na casa, pois ela não existe mais. Soube, meses depois, que aquela foi a última festa ocorrida na residência, vendida dias depois para que uma construtora imobiliária pudesse erguer mais um edifício na rua. Não há mais casas por aqui. Há obras, esmeril, barulhos, britadeiras, martelos, betoneiras, escavadeiras; há engenheiros e arquitetos que parecem se esforçar para conferir à rua a cara de cidade que lhe faltava. Há caos, desordem típica de metrópoles que crescem sem mais poder. Crescem para o alto, porque todos os lados já estão ocupados.

Ainda assim, apesar do tiritar frenético da britadeira que desrespeita feriados ou tardes de sábado, ainda me apaixono pelo movimento urbano que mora ao lado. Incrível que não tenham soterrado os peões com ovos podres ateados de janelas intolerantes ao barulho. Confesso que pensei nisso inúmeras vezes, mas jamais me atrevi ao feito. Seria um ato bárbaro, incoerente vindo de alguém que tanto preza a pluralidade das cidades. Meu ato de resistência é outro. Quero mudar-me para um prédio já cercado por outros tantos que não permitam lembrar-me que a vida por aqui já foi bucólica. Contra a cidade, faço parte dela. Inteira, toda, sem resquícios de um passado tranqüilo. Sem casas ao lado que possam se transformar em arranha-céus.


Nota do Editor: Jornalista e professora, Vany Paiva é paradoxal e caótica, como qualquer cidade.

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