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Opinião
13/05/2005 - 15h01
Glauber Rocha, cinema e Estado
Ipojuca Pontes - MSM
 

David (Eulálio) Neves, cineasta que escrevia melhor do que filmava, sempre que me encontrava vinha com a mesma conversa: "Glauber Rocha acha ’Os Homens do Caranguejo’ um filme primoroso". David, ele próprio, também achava o meu pequeno documentário sobre a miséria nordestina um "ensaio primoroso" (escreveu isso). E, quase sempre depois de breve e anasalada conversa, se despedia, intimando: "O Glauber quer conhecer você".

Mas, por diversas razões nunca fui apresentado ao famoso cineasta. A primeira delas era que, em que pese achar "Deus e o Diabo na Terra do Sol" a soberba mistura do melhor Zé Lins do Rego ("Cangaceiros") com a força vulcânica de Euclides da Cunha ("Os Sertões"), ainda que de um marxismo-sartreano de gaveta, nunca fui com as formas "apriorísticas" de conhecimento do cineasta baiano, uma figura por vezes intimidante, com jeito de "manda-chuva". Por sua vez, para minha decepção, tinha conhecimento da experiência vivida pelo radialista Luiz Andrade, que saiu da Paraíba de ônibus para entrevistar Glauber Rocha no ’Bar da Líder’, em Botafogo (Rio), enfrentando uma situação - digamos assim - pouco confortável: enquanto concedia a entrevista, o cineasta genial tirava meleca do nariz e, de forma automática, a enfiava no gravador do deslumbrado repórter.

Tempos depois, sem ser apresentado, travei conhecimento direto com o "estilo Glauber", de modo inusitado: estava eu na mesa de montagem do INCE ajustando imagem e som do filme "Canudos", quando surge a ousada figura, na certa atraída pelas tomadas da via crucis de Monte Santo, cenário das prédicas do Conselheiro, onde ele, Glauber, havia filmado Deus e o Diabo. O som era o depoimento em voz pausada de um historiador baiano.

- Isso é Zé Calazans? - perguntou.

- Exatamente. É a voz do professor José Calazans - confirmei.

- Sabe tudo de Canudos, mas não tem ideologia - afirmou.

Achei o comentário despropositado, e retruquei, indagando:

- O que é que tem isso?

Neste exato momento ouviu-se no corredor a voz do crítico Fernando Ferreira, que dirigia o INCE, e o cineasta retirou-se, sem se explicar.

O meu segundo contato com Glauber Rocha, no final dos anos 70, não foi menos perturbador. Estava no posto 9 de Ipanema, conversando com um cineasta recém-chegado da Alemanha, quando surgiu Rocha, arrastando as sandálias, ar de brilho, ao lado do psicanalista Eduardo Mascarenhas, a quem Paulo Francis atacara duramente (o tinha na conta de charlatão). Glauber foi efusivo, mas veemente, na direção do cineasta recém-chegado:

- Soube que você esteve com Straub, em Munich. Aquilo é falsa vanguarda, um vampiro. Se apropria dos meus achados de montagem nuclear e esconde o jogo. Vou denunciá-lo publicamente, quando for a Paris. Aquilo é um pirata! Um vampiro!...

O cineasta chegado da Alemanha, no entanto, para minha surpresa, não se intimidou. E retrucou duro, dedo em riste:

- Você está sendo leviano, Glauber. O Straub é um cineasta sério. Faz um cinema elíptico, lacunar, e não deve nada a você... Você tem a mania...

Neste instante, pressentindo que o caldo ia entornar, o psicanalista Mascarenhas empreendeu uma retirada estratégica. Mas o cineasta baiano foi inventivo. Aquietando o querelante, saiu-se de uma maneira, para mim, paraibano de corpo e alma, mais que desconcertante:

- Tem calma, rapaz. O Straub é meu amigo. Eu disse isso sobre ele só para ver como é que o Mascarenhas, que é meu psicanalista, vai se comportar na sessão de análise de hoje à tarde...

A última vez que vi o líder do Cinema Novo foi no estúdio de som do técnico Nelson Ribeiro, ainda em Botafogo. Eu fazia trabalhos de mixagem de um filme, no horário vespertino e Glauber usava, inadvertidamente, o meu tempo. Um funcionário da Nel-Som, para contornar o problema, foi solícito:

- O Glauber tá ligadão e atrasado na mixagem do filme dele. Tem problema se a gente entrar no seu horário?...

- Problema nenhum. Para Glauber, é um dever - encerrei.

Quando Glauber saiu da esfumaçada sala de mixagem foi efusivo e veemente:

- Ipojuca, escrevi no meu livro "Revolução do Cinema Novo" que você é, ao lado de Bruno Barreto, da geração que vai perpetuar o Cinema Novo. Você também é da patota do Cinema Novo!...

- Pelo amor Deus, Glauber - disse -, não faz isso não. Eu não sou de patota nenhuma, menos ainda do Cinema Novo.

- Você é Cinema Novo, sim, o Alex (Viany) disse que você é Cinema Novo!

E saiu, sem mais delongas, arrastando as sandálias, pois detestava ser contradito.

Muito bem. Por que estou escrevendo sobre Glauber Rocha, quando deveria escrever, por exemplo, sobre a transposição das águas do São Francisco, mais uma "maracutaia" em andamento, há anos condenada por técnicos do Banco Mundial? Bem, a resposta é a seguinte: o leitor Davi Tenório, via e-mail, indaga por que diabos não se faz filmes no Brasil sobre a verdade dos regimes socialistas ou ainda, por extensão, sobre a atuação nefasta de guerrilheiros que infestaram a vida brasileira?

A resposta à tal pergunta está associada à pratica e teoria Rochiana, que mitificou sem dó nem piedade a fantasia de um cinema "revolucionário e tri-continental", voltado para a "transformação radical" da realidade brasileira, embasado no mais reles marxismo-leninismo-fidelismo, a influenciar toda uma geração de cineastas que via o cinema apenas como instrumento de luta de classe para a conscientização política e social da patuléia cabocla. Glauber Rocha se julgava o Che Guevara do cinema e, não raro, anunciava aos acólitos o propósito de deixar a câmara (na mão) para pegar na metralhadora.

Vem daí, da visão do cineasta como "agente de transformação" da sociedade, o mito de que o cinema no Brasil não pode viver sem o "apoio" do Estado (leia-se dinheiro grosso do contribuinte), visto que o espectador comum se nega a financiar com os minguados recursos do próprio bolso, as pretensões milionárias do narcisismo revolucionário. O povo quer do cinema apenas lazer - mas o governo e partidos totalitários (Lula e PT), para ampliar o "tamanho do Estado" e manter o poder incólume, assumem plenamente a visão do cinema como "agente de transformação" e, a cada instante, aumentam impostos e taxas para fazer crescer a cornucópia irresponsável.

Voltaremos ao assunto.


Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.

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