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Crônicas
20/11/2015 - 15h05
Veias abertas
Rangel Alves da Costa
 

Do jeito que vai, certamente que nada de bom restará deste todo que ainda continua em pé. Outro destino não terá senão tombar como resto imprestável e, caído, outra sina não terá que não em putrefação se transformar para a glória dos urubus e outros carnicentos. Mas antes disso, como uma autópsia em vida, e como forma de compreender o que provocou a destruição, será necessário abrir as veias. E com as veias abertas fazer sangrar o que talvez ainda reste de um passado vivaz e esperançoso.

Não se espante com a descrição. O pré e o pós-sangramento nunca são diferentes. Na carne ou no que dela reste, a lâmina afiada escolhendo algum vestígio de veia e sobre ele passando o gume sem piedade. Algum sangue ainda resta para jorrar na bacia das almas. Sangue vermelho, pois de gente e não da nobreza, sangue de frescor fétido, pois de gente e não do rei decepado ou da rainha sob a guilhotina. E naquilo que já parecia sem vida, bastou a voracidade da lâmina para tudo ao redor avermelhar pela inesperada sangria.

Contudo, nem sempre as lâminas são mais eficazes que outros instrumentos. Do mesmo modo, não somente de um corpo humano pode jorrar o sangue nas veias abertas. Não há fio mais perigoso que a realidade, não há gume mais voraz que o presente, não há corte mais certeiro e perigoso que o do poder sobre o paciente. E pacientes são todos os flagelados, os aviltados, os submissos, os enganados, os torturados, os negligenciados, os sofridos, os atormentados, os órfãos de esperança nestas veias chamadas Brasil. E que agora sangram.

Agora sangram, mas cujos sangramentos já se prolongam desde muito tempo, desde que as naus portuguesas avistaram as costas tão verdejantes. Daí em diante, o sangue nativo derramado pela sanha dos viajantes, dos negociadores da vida e dos falsos propagadores da fé. Povos inteiros dizimados pela exploração, pelas doenças, pelas armas. Toda uma nação indígena que ainda hoje sangra por cima do que ainda resta de suas matas. Também o sangue jorrado desde a travessia negreira e lançado em espasmos no martírio escravo. O sangue golfando na cor, na submissão, na crueldade. E também empoçando as senzalas, os troncos, as costas lanhadas, o corpo esvaído. Tais veias, abertas em nome de um tempo outro, continuam tão expostas quanto do primeiro corte na carne.

Quanto sangue jorrou de um povo submetido pela colonização. Quantas lutas se deram na vã tentativa de afastar da pele o fio sedento da navalha. O sangue da desonra, da opressão, da sanha cega do colonizador. Uma pátria avermelhada pela impiedade dos impostos, pela vileza na usurpação das riquezas da terra, pelo trabalho escravo e pelo povo livre escravizado, pelos luxos palacianos e as misérias de tantos. E sem poder gritar, discordar, reagir. As reações tiveram o troco da lâmina. Aqueles que assim fizeram tiveram suas cabeças cortadas, seus corpos espalhados pelas ruas. Mas quanto mais sangravam mais as veias eram abertas.

Aqueles primeiros colonizadores foram embora, as lâminas afiadas seguiram além-mar, porém deixaram para trás o sangue vivo borbulhando na terra. E mais tarde outros colonizadores se arvorariam do direito de não apenas dilacerar ainda mais as veias abertas do povo e da nação, como sugar grande parte da vida das riquezas vegetais, minerais e econômicas. Então tudo se esvaindo em espasmos e sofrimentos sem fim. E não obstante isso, internamente, as lutas sangrentas travadas por todo lugar. As injustiças e as opressões comandadas pelos governantes fazendo com que os campos e as caatingas se avermelhassem pelo ódio e pela valentia. As veias abertas já estavam em estado de hemorragia.

Os governantes, que fossem militares da espada, oligarcas do café e do leite ou simplesmente representantes das elites burguesas, além de oprimir a nação, aviltar os salários, aprisionar inocentes, trancafiar nas masmorras e espalhar o terror, foram com avidez em busca de outras veias. Mas que sangue possui um povo esvaído pela opressão? Ainda assim a sede voraz afiou o seu gume. Então surgem dois governos revolucionários: de revolução popular e revolução militar. O silêncio forçado era pouco, as perseguições eram poucas, as prisões e torturas eram poucas, os desaparecimentos eram poucos, queriam mais. E o sofrimento do povo era tudo que queriam. Então uma caça aos vermes para que suas botinas se regozijassem da pisoteamento e o esfacelamento fortalecesse o poder. E assim um tempo de sangue espalhado e jorrado nos caminhos da história.

Quando se imaginou que os tempos novos seriam diferentes, quando se pensou que governos democráticos lutassem pelo fortalecimento da vida, eis que apenas iludir a retomada das forças da população e assim, com o povo alimentado de promessas, novamente afiar a lâmina maldita. E não há sangramento maior ante o insignificante salário, perante a carestia e a inflação, diante das taxas e impostos absurdos, no preço do pão, do remédio, da vida. Além de um estado hemorrágico sem fim na saúde, na educação, na segurança pública, em qualquer sonho de dias melhores que se possa ter.

E o que dizer da situação atual, senão a morte do morto, o funeral do já sepultado? As veias foram tão abertas que não restou nenhum pingo de sangue nas veias do povo. Nem da nação. E o pior é que não se dá por satisfeito. Agora a lâmina governista vai além da veia. Sangra a vida e as esperanças.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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