A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de doença mental contida na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais - universalmente conhecido como DSM-5, que transforma o cérebro num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que não aceita a classificação porque não é doença o que não pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não possui padrão uniforme e não pode ser confirmado. Como está, ninguém escapará da lista que vem aí. Quem não viveu alguma dessas graves “doenças” psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia e distúrbios diversos. São tantos os nomes das “doenças do nervo”, que viraram sinônimos de remédios e comportamentos. A sociedade precisa perceber a gravidade dessa epidemia que fez o mundo ter mais farmácias do que livrarias e que busca tratar pela psiquiatria todas as dificuldades e problemas que fazem parte da vida, criando, assim, novos doentes. Desde o massacre na escola primária Sandy Hook, na cidadezinha americana de Newtown, Connecticut, a Associação Nacional dos Rifles (NRA), incapaz de continuar defendendo a venda de armas sem restrição, esquentou o debate no país, ao pedir socorro à psiquiatria. Propôs, depois de dizer que “não é a arma que mata, mas quem puxa o gatilho”, a criação de uma lista nacional de doentes mentais, ou de quem alguma vez recorreu a serviços psiquiátricos. Tal relação seria depositada nas lojas de armas e quem estivesse nela não poderia comprar. Quem disse que maldade e egoísmo são doenças mentais? Quem acha que o doente mental criou a violência gratuita de nossa civilização? Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a essa forte tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio e mandar para o hospital, que iremos todos para as listas dos estigmatizados. Qual é a definição precisa de transtorno mental? Perder um amor ou o emprego, sofrer um acidente, desviar-se na vida durante a juventude? Quem, um dia, não precisou de um pouco mais de atenção ou afeto, que vem pela vida pessoal, mas pode vir, também, através de terapias? E, por isso, é justo ir parar em uma lista de tutelados? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas? Quem cuidará dos verdadeiros doentes? O sofrimento de uns e a maldade de outros são cada vez mais tratados como doença. E o mal-estar diante do mundo é visto como um distúrbio psíquico que exige intervenção sanitária. A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem limite do mercado financeiro e da política. Ao amedrontar e submeter pessoas pela criação de patologias, a sociedade livra-se de enfrentar racionalmente crises e injustiças. Desiste de regras de entendimento coletivo, exercidas democraticamente, sem sujeição ao medo ou à sua manipulação. Não é pela medicina que enfrentaremos os graves problemas da violência. Nem basta relacionar sintomas para definir como transtorno qualquer manifestação da personalidade. Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se oferece como panaceia, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como se fosse terapia. Pior quando o diagnóstico médico converte-se em missão sanitária destinada a esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente à vida dos outros. E que só vê as pessoas de maneira binária, como dois polos da vida do interesse: exitosas ou fracassadas. As listas da sanidade ou da loucura são “inventários de cicatrizes”, vestígios de uma contabilidade que serve para afirmar o poder do Estado, cada vez mais uma organização privada e das instituições coercitivas sobre a liberdade dos indivíduos. Uma vez nelas, ninguém se iluda que dali sairá, nem que elas serão usadas para outros fins além dos que se destinam. Há um lado saudável nas políticas de saúde quando acolhem com atenção, mas há um lado racista, que busca a marca humana do doente, para a discriminação. Dar o nome de doença à indiferença social e somente ver a medicina como remédio e hospital só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição. Nota do Editor: Paulo Delgado (contato@paulodelgado.com.br) é sociólogo.
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