O objetivo primordial de todo ser humano que se dedica a algum ofício, bem como o de qualquer operário na lida diária, não é outro senão a busca de algum benefício próprio, além da preservação para si, como um direito legítimo, dos frutos desse trabalho. Em outras palavras, alguém que empresta suas forças ou suas habilidades a outrem adquire o perfeito e inalienável direito não só de exigir um salário (remuneração), mas também de utilizá-lo como bem entenda. Conseqüentemente, quaisquer bens adquiridos com os frutos do trabalho são, em última instância, o próprio salário revestido de outra aparência. Daí que esses mesmos bens devem manter-se em seu domínio, como o salário conseguido com o trabalho. Isto é, precisamente, em que consiste, como facilmente se conclui, a propriedade privada. [1] O direito de propriedade, tal qual o direito à vida e à liberdade, é visto pela maioria dos grandes filósofos como um direito natural do homem. Um direito anterior ao primeiro esboço de qualquer estado ou norma formal. Um direito espontâneo, cuja origem remonta, muito provavelmente, ao instante em que um de nossos ancestrais abateu a primeira lebre, guardou-a e defendeu-a (para si e seu grupo) contra as investidas dos seus semelhantes e de outros animais, a exemplo do que fazem, ainda hoje, alguns felinos das estepes africanas com o produto da sua caça. John Locke, ilustrando magistralmente como os direitos naturais de propriedade e liberdade estão intrinsecamente correlacionados, assim se manifestou sobre esse tema ao mesmo tempo belo e envolvente: "Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e lhe junta algo que é seu, transformando-a em sua propriedade." [2] David Hume, por seu turno, já havia inferido o quanto esse instituto era importante para a promoção do interesse geral da humanidade quando assinalou: "Quem não vê, por exemplo, que tudo que é produzido ou aperfeiçoado pela arte e pelo trabalho de um homem deve ser-lhe assegurado para sempre, a fim de encorajar esses úteis hábitos e realizações? Ou ainda, que a propriedade deve passar por herança para os filhos e parentes, tendo em vista o mesmo útil propósito? Que ela deve poder ser alienada sob consentimento para gerar o comércio e o intercâmbio que são tão benéficos para a sociedade humana? E que todos os contratos e compromissos devem ser diligentemente cumpridos a fim de assegurar o mútuo crédito e confiança que tanto promovem o interesse geral da humanidade?" [3] Na trilha do pensamento de Hume, Tom Bethel, em seu livro "The Noblest Triunph", investiga as causas primordiais para a riqueza das nações e as encontra, justamente, na instituição da propriedade privada. Segundo esse autor, os países que protegem e defendem os direitos de propriedade são os mais ricos e prósperos, enquanto aqueles que os violam e negligenciam estariam condenados à pobreza. Para confirmar sua tese, Bethel fornece, dentre outros elementos, alguns exemplos fascinantes. Segundo seu relato, os primeiros colonos enviados para determinadas comunas em Massachusetts e Virginia aportaram no Novo Mundo sob um contrato de longo prazo que os tornava praticamente escravos. Em razão desses contratos, os "peregrinos" estavam obrigados a entregar toda a produção aos chamados "centros comunitários". Em troca, receberiam o "suficiente" para a subsistência. A conseqüência econômica de tais sistemas foi uma produtividade extremamente baixa, que trouxe consigo uma vida paupérrima, a fome e diversas outras mazelas. Como era de se esperar, a partir do exato momento em que tal política mudou, permitindo-se que aqueles mesmos colonos lavrassem as próprias terras, permanecessem com o fruto do seu trabalho e pagassem um imposto relativamente baixo, a produção disparou e as colônias prosperaram. Bethel demonstra ainda, que grande parte do poderio econômico e militar, tanto do Império Romano como Britânico, se deveu à segurança fomentada pelo direito de propriedade. É interessante que nos dois casos, o instituto formal da propriedade privada estabeleceu-se após um longo processo evolucionário de natureza pragmática, uma prática que se foi arraigando nas leis de forma lenta e gradual, não impositiva. Na Inglaterra, por exemplo, isso foi produto do direito consuetudinário (fundado na prática, nos costumes ou no uso), que se desenvolveu, paulatinamente, como resultado dos milhares de processos judiciais, e não em virtude de leis promulgadas pelo parlamento. Por se tratar de um direito natural, cuja instituição formal (conceitual) surgiu de maneira espontânea e gradual, os primeiros economistas, como Adam Smith, a davam por plenamente assentada. De fato, quem lê as suas obras não encontra nenhuma defesa da propriedade privada. Suas análises sempre assumiram que a propriedade estava em mãos particulares e protegida pelo aparato estatal. A falta de uma fundamentação filosófica e econômica adequada para o direito de propriedade é vista por Bethel, como um dos fatores determinantes para o florescimento do marxismo (doutrina que propõe a extinção da propriedade privada por enxergá-la como algo imoral) durante o Século XX. [1] Tradução e adaptação do item 3º da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII. Cidade do Vaticano em 1891.
[2] Locke, John. Dois tratados sobre o governo. Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 409. [3] Hume, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Editora UNESP, São Paulo, 2004. Nota do Editor: João Luiz Mauad é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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