Estava tudo pronto. Enfim o Brasil iria entrar na corrida espacial. É bem verdade que ia largar dos boxes, mas havia um justificado motivo de orgulho: seria o primeiro país da América Latina a mandar uma nave tripulada ao espaço. Foram anos e mais anos de pesquisas, licitações fraudulentas, concorrências de cartas marcadas e compras a preços superfaturados. Mas, apesar da descrença da maioria e da grana embolsada pelos mais chegados, lá estava, na principal plataforma de lançamento da Base Aeroespacial de Cabo Cana e Verão, o Surucucu V, o foguete que iria despejar no cosmos o jeitinho brasileiro de ser. Milhares de pessoas estariam presentes à festa propositalmente marcada para o dia 31 de março, numa homenagem ao golpe militar que arrancara o Brasil do passado e o lançara rumo ao futuro, exatamente como faria daí a pouco o Surucucu V, levando a bordo os astronautas Da Silva, Ferreirinha e Damásio. A rotina da cidade mais próxima à base mudara da noite para o dia. Autoridades estrangeiras, jornalistas de todo o mundo e gente arregimentada nos currais eleitorais da região aguardavam ansiosos o evento. Caberia ao presidente da República em pessoa apertar o botão de disparo. A missão de nossos três heróis não poderia ter um significado mais próximo de brasileiros e brasileiras: pôr em órbita ao redor da Terra a bola com a qual Pelé marcara seu milésimo gol. Seria, em definitivo, a marca da "Pátria de Chuteiras" assentada no infinito. A visão do Surucucu V brilhando ao sol do litoral nordestino parecia uma miragem. Pintado nas cores da Bandeira Nacional - o verde de nossas matas, o amarelo de nossas riquezas, o azul de nosso céu e o branco de nossa diminuta memória - ele fazia lembrar uma alegoria de escola de samba do grupo especial. Ali estava a última palavra em tecnologia tupiniquim. É bem verdade que os propulsores eram Rolls Royce, os instrumentos de precisão fabricados na Suíça, o combustível sólido fornecido pela Shell e a comida dos astronautas preparada pelo McDonalds. Também era verdade que tantos desmandos administrativos tornaram impossível confeccionar o Surucucu V em titânio, como defendiam os mais brilhantes cientistas brasileiros, chamados às pressas pela Espaçobrás em universidades dos Estados Unidos e da Europa. Entretanto, tudo fora resolvido no melhor estilo patropi, sendo o foguete construído com uma mistura de fibras de vidro e de carbono por um grupo de surfistas profissionais. O cerimonial não se esquecera de qualquer detalhe para a festa de lançamento. Um super-show com as mais famosas duplas sertanejas distrairia o público das arquibancadas enquanto os técnicos da Espaçobrás cuidassem dos últimos detalhes. Seguindo a tradição bem brasileira, tudo acabaria em samba e pizza: a ala das baianas de uma grande escola de samba carioca desfilaria ao redor do foguete em trajes futuristas, desenhados pelos maiores estilistas do país, e a distribuição de pizzas ficaria a cargo de uma cadeia internacional de fast food. O tão esperado dia 31 de março enfim chegou, trazendo, porém, uma desagradável surpresa: desde a madrugada chovia torrencialmente sobre a Base de Cabo Cana e Verão. Nesse ponto o leitor atento deve perguntar: "mas em que uma chuvinha à toa poderia prejudicar o lançamento do poderoso Surucucu V?" Em nada, é verdade. Mas... e a festa? Reunido em caráter de emergência, o alto-comando do Programa Espacial Brasileiro resolveu dar um crédito de confiança a São Pedro e esperar pelo dia seguinte. Foi uma decisão acertada. No outro dia o sol voltou a brilhar sobre a base. O palanque armado para o presidente, ministros, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, familiares e apadrinhados estava pronto, assim como o destinado às autoridades estrangeiras e à imprensa. As arquibancadas populares foram enfeitadas com bandeirolas nas cores verde e amarelo, cuja visão ficou um pouco prejudicada pelas centenas de faixas de agradecimento colocadas por gente ligada aos políticos interessados em faturar o acontecimento. Estava na hora. A banda da Sociedade Musical Constantino Chaves, da cidade vizinha, tirou do fundo do baú a marchinha "Pra Frente Brasil", cantada com raro entusiasmo pelo público, que no lugar do refrão "salve a seleção" improvisara um apropriado "viva o foguetão!" Encerrado o show musical com uma aplaudidíssima apresentação da Banda Marcial dos Fuzileiros Navais, que pela quinquilhonésima vez desfilou formando o desenho de uma âncora, foi a vez de os astronautas assumirem seu devido lugar de destaque. Com seus reluzentes macacões repletos de logotipos de patrocinadores, lá estavam eles, perfilados junto ao palanque presidencial. Muito emocionada, a mãe de Da Silva chorava agarrada a um contracheque do filho, repetindo em meio a soluços: "será que vale a pena? Será que vale a pena?" Sob um sol de 40 graus nossos heróis ouviram palavra por palavra o improviso de vinte laudas lido pelo presidente. Ferreirinha, com a bola de Pelé debaixo do braço, desmaiou três vezes de emoção, calor e tédio. Depois da execução do Hino Nacional, os três se dirigiram, sob aplausos, ao elevador que os levaria até a cápsula, na ponta do Surucucu V. Mas o elevador - de fabricação estrangeira, como o locutor oficial do evento fez questão de frisar - não funcionou. A tripulação teve que galgar os 358 degraus da base da plataforma até a nave. Atento, o público aplaudia a cada escorregão. Alguns, menos patriotas, gritavam "pula!, pula!". Nada, porém, deteve nossos bravos rapazes. Fechada a cápsula, o presidente ordenou uma mudança de última hora. Fiel a seu estilo progressista, o Chefe da Nação se negou a fazer a contagem regressiva. Iria contar, sim, de um a dez, e que o Surucucu V ganhasse o cosmos, o infinito. A emoção dominava a todos. O público das arquibancadas populares estava inquieto. Os vendedores ambulantes já havia parado de apregoar aos berros seus produtos, formando diante das arquibancadas uma platéia à parte. Os convidados estrangeiros não desgrudavam os olhos do foguete, enquanto os técnicos da Espaçobrás, ajoelhados e de mãos dadas, formavam um círculo ao redor da plataforma, rezando pelo sucesso do lançamento. Por fim, pelos alto-falantes da base ouviu-se a voz embargada do presidente: - Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove... ... BUUUUUMMMMMMMMMMM Não era possível acreditar naquilo. O Surucucu V, orgulho de um povo, explodira sem subir um só centímetro do chão. As autoridades, ainda atônitas com o insucesso inesperado nem sequer tinham começado a procurar alguém a quem culpar pelo fiasco, quando o público das arquibancadas populares levantou-se e gritou quase a uma única voz: - PRIMEIRO DE ABRIL!!!!!!! Nota do Editor: Victor Abramo é jornalista.
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