Fala-se muito sobre livros. Escritores e leitores dão depoimentos sobre seus hábitos de leitura mostrando que, aqueles que lêem, formam realmente uma irmandade. Mas há uma lacuna. Ninguém fala de um dos lugares prediletos para leitura: o banheiro. Não, não se trata de costume estranho. Muita gente lê no banheiro, como por exemplo, Ernest Hemingway - na casa dele, preservada como museu, pode-se ver pilhas de livros ao lado do vaso. Como médico, não posso recomendar esse hábito - está classicamente associado ao surgimento de hemorróidas - mas, como escritor, e leitor, tenho de reconhecer que o banheiro é um lugar privilegiado para a leitura. É quieto, tem privacidade, e dá para esquecer o tempo - a menos que haja alguém esperando para entrar (e, convenhamos, nada mais aflitivo para a pessoa que está apertada do que encontrar o banheiro trancado). E há grande interesse no assunto. Se vocês digitarem "Leitura no banheiro" na Internet, obterão 430 mil referências. Haja banheiro, portanto. E haja leitura. O que ler no banheiro? A resposta mais óbvia é o jornal - aliás, bem pode ser que você esteja lendo este texto no WC. O que a mim não incomoda. Qualquer vaidade que eu pudesse ter a respeito, perdi-a há muito tempo. Havia um poema de banheiro que dizia, filosoficamente: "Neste recinto sagrado / onde a vaidade se acaba / todo covarde faz força / todo valente se c...". Os anônimos escritores de banheiro, aliás, deveriam um dia ter sua chance. Noel Nutels, grande sanitarista e grande gozador, era um colecionador destes textos, e garantia que entre eles havia verdadeiras obras-primas. Depois do jornal, temos as revistas. Velhas: revista em banheiro e em sala de espera tem de ser, no mínimo, do ano passado. Mas, como no caso do jornal, não se trata bem de informação, trata-se de distração. Agora: para quem quer uma leitura mais séria, só se pode recomendar o livro. Não qualquer livro. Há obras contra-indicadas no banheiro. Poesia, por exemplo: é inefável demais. Textos longos, eruditos, também não servem. Ninguém lerá Marx no WC. A propósito, a elaboração de O Capital custou caro ao traseiro de Karl. Tendo de passar longos períodos sentado na biblioteca, acabou desenvolvendo, não hemorróidas, mas dolorosos furúnculos. "O mundo pagará por meus furúnculos", dizia, meio brincando, meio falando sério. E, em certo sentido, o mundo pagou mesmo: a luta de classes, inspirada falsa ou legitimamente pelo marxismo, serviu de pretexto para a execução de muita gente. Falando em Marx: seria só questão de tempo para que o mercado descobrisse uma maneira de compatibilizar leitura com banheiro. Nos Estados Unidos, numerosas empresas comercializam papel higiênico com texto impresso. O que, em primeiro lugar, representa um considerável avanço em relação ao costume, comum no Brasil, de usar jornal para este fim. É uma desconsideração para com os jornalistas, e é desconfortável. Jornal não foi feito para isso. Além de soltar tinta, não é macio (e maciez é a coisa mais valorizada em propaganda de papel higiênico). Depois é uma forma original, ainda que estranha, de divulgar a cultura. Estranhos, aliás, são os títulos de algumas destas obras - uma delas é um conto intitulado There’s a snake in the toilet, há uma cobra no banheiro, o que não contribui muito para a tranqüilidade do leitor sentado no vaso. Escrever para papel higiênico deve ser, antes de tudo, uma arte. Uma arte de síntese, em primeiro lugar. Além da limitação do tempo de leitura, que pode haver em alguns casos, existe o problema do gasto de papel, que é barato, mas não tanto - os fabricantes já chegaram a reduzir a metragem para manter o preço. A arte de escrever em papel higiênico tem raízes no passado. Afinal, foi como rolo que o livro começou. Certo, era rolo de pergaminho (duvido que alguém usasse aquilo como se usou o jornal), mas não deixava de ter sua praticidade, tanto que a leitura na tela do computador obedece ao mesmo princípio. Se esta arte tem passado, certamente terá futuro. Muitos dizem que as bibliotecas desaparecerão. Mas o banheiro, sem dúvida, persistirá. E enquanto estiver aí, haverá esperança para a literatura de banheiro. Hemingway gostaria desta.
|