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SEÇÃO
Crônicas
08/07/2016 - 06h55
Diário da solidão
Rangel Alves da Costa
 

Agora chove. Sempre chove. Tudo sempre parece nublado, escurecido, carregado demais. Ou vazio demais. Ainda hei de perguntar ao sol se não se cansa de nascer e morrer todos os dias. Ainda hei de perguntar a lua se não se cansa de surgir alegre e depois partir tristonha todos os dias. Por que já me cansei de tudo.

Sei o que é reclusão sem estar aprisionado numa cela ou entre grades. O pior é ter a porta, e uma porta que pode ser aberta a qualquer momento, e não querer sair. Dizem que depois da porta e da janela sempre há uma vida chamando a viver. A liberdade permite seguir por onde quiser. Mas meus passos não seguem a lugar algum.

Não tenho mais papel nem lápis. Os poemas beberam veneno, as cartas cortaram os pulsos. Não tenho mais vela para acender. Candeeiro sem gás e sem lâmpada no bico de luz. Também já não sei se tenho qualquer coisa a escrever. Não escrevo mais sobre ilusões, sobre impossibilidades, sobre devaneios de inocente coração. Não mais amor, nada mais sobre amor. O jardim é belo, mas todas as flores morreram.

Antigamente um passarinho cantava sobre o umbral da janela. E pela fresta uma borboleta entrava para mostrar sua cor. Mesmo com pouca luz, esvoaçava deixando rastros de arco-íris. Mas tudo sumiu. Um dia imaginei que colocando flor de plástico dentro de copo d’água ela permaneceria viva. A borboleta um dia quis beijar sua pétala e entristeceu. E a flor empoeirou e perdeu a cor, depois ressecou e morreu perante o meu olhar.

Não me recordo mais da última vez que abri a janela. Era noite, isso eu consigo lembrar. Mas a lembrança vem do sopro diferente da ventania naquela noite. Foi a primeira vez que ouvi canção e lamento vindos do vento. Noite sem lua, tristonha, e de repente o açoite batendo à janela. Folhas secas ainda passavam, as folhagens pareciam gritar, mas em seguida uma canção sem voz foi chegando no sopro. Quanto mais o vento soprava mais a canção ecoava em mim. Quando tudo cessou e fechei a janela, então ouvi um lamento do lado de fora. Era o último sopro chorando saudade.

Talvez, sem eu perceber, um sopro de vento tenha entrado pela janela assim que resolvi fechá-la. De vez em quando ouço a mesma canção, e por noites inteiras a canção ecoa em minha solidão. E depois o lamento, o canto triste, trazendo mais tristeza e dor. Por isso que passei a desejar um vento novo e uma nova canção, sem lamento ou dor, mas sempre me esqueço de abrir a janela quando a noite chega e a ventania vem fazendo caminho.

Não sei mais quantas vezes lancei mão do embornal para abrir a porta e seguir estrada. Jogo dentro rabiscos e escritos e depois sempre deixo a partida para outro dia. O embornal está num canto do chão, aberto, esperando somente que eu decida partir. Mas creio que nem dele irei precisar. Basta-me o chinelo de dedo e a roupa de cima, mesmo já envelhecida demais. Partirei e seguirei sem olhar pra trás. Talvez aquela borboleta venha se despedir e já me encontra distante, um vulto na estrada, uma sombra que some.

Encorajo-me a viver assim. Seguindo, seguindo. Caminhando, caminhando. Sempre, e sempre mais, e por caminhos esquecidos e veredas desconhecidas, rumo ao próximo destino ou ao nunca chegar. Comer dos frutos do mato, beber da água da fonte, descansar sobre a relva, adormecer debaixo da copa das grandes árvores. Sem palavra à boca, sem ninguém para falar, talvez até eu me esqueça que exista o verbo. Também não será necessário ante o que o meu passo e o meu olhar desejam.

Avisto-me como aquele que vai porque deseja ir. No clarão do sol, entre névoas e brumas, debaixo da noite, no rastro da lua. Ouvir sinos distantes, orar para um Deus ainda vivo, tecer um rosário de pedras e de fé. Por que a solidão não afasta a fé e nem se distancia de Deus. E é ele a companhia que nunca se afasta, ainda que de vez em quando a angustiada voz pronuncie: Eli, Eli, lama sabactani? Ou Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!

Fecho o diário da solidão por que nada mais há dizer. Tudo escrito no pensamento, pois sem folha e sem lápis. A noite avança e já é madrugada longa. A insônia me faz procurar a lua pela fresta. Ouça a canção do vento. Sei que logo chegará o lamento. E eu não queria chorar, eu não queria sofrer.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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