Suponho que o leitor tenha péssima imagem das Cruzadas. Considera-as momentos negros da história da humanidade. Mais ou menos assim: estavam os elegantes e cultos seguidores de Maomé postos em sossego, como Inês de Castro, colhendo o doce fruto de seus anos, quando irromperam os selvagens cristãos, em sucessivas investidas, tentando arrancar-lhes do peito a sua Jerusalém. Essa imagem se formou em aulas de história, nas piadas e gracejos anticatólicos de cursinhos e universidades, e em criteriosas conversas de mesa de bar. As Cruzadas fazem parte da surrada coletânea de acusações com que se denigre a imagem da Igreja, sempre repetindo as mesmas coisas. Seria desonestidade desenhar qualquer das Cruzadas como marcha de indivíduos exemplares, soldados valentes e leais, em busca da libertação do Santo Sepulcro. Entre os nobres propósitos da convocação feita em Clermont por Eudes de Châtillon, o papa francês, Urbano II - "Homens de Deus, homens eleitos e abençoados..." - e a massa humana que chegou a Jerusalém, havia enormes diferenças: dois anos de marcha, milhares de quilômetros e uma curiosa amálgama de santos (como S. Luis), guerreiros valentes e generosos (como Godofredo de Bulhões) e bandidos interesseiros (como Boemundo). Tinha que acontecer de tudo um pouco e aconteceu mesmo. Mas não é isso que ponho em discussão. O que pretendo suscitar é o que não se menciona sobre o contexto em que se desenrolaram tais fatos. Corria o século XI. Cavaleiros de Alá e muçulmanos de várias nacionalidades, havia quatro séculos, tinham tomado Jerusalém e ameaçavam a Europa por todas as suas penínsulas sobre o Mediterrâneo. E não o faziam com bons modos. Havia mais de trezentos anos dominavam a Península Ibérica. Al-Hakim, em 1010, destruíra o Santo Sepulcro. Sucediam-se os ataques contra Bizâncio, de onde o basileu Aleixo Comneno pedia socorro ao Ocidente para defendê-la de investidas que se prolongaram por oitocentos anos e se completariam em 1453 quando Maomé II tomou a cidade em definitivo. Aliás, a longa saga e a agonia de Bizâncio, as terríveis 72 horas que se sucederam à queda do último baluarte cristão no Oriente, quando milhares de cristãos foram decapitados (o sultão invasor prometera entregar a cidade a seus soldados por três dias), compõem uma das páginas mais terríveis da História. Mas não é verdadeiro que esse fato só entra no nosso conhecimento como "a tomada de Constantinopla pelos turcos" a dar causa às Grandes Navegações? Essa é a narrativa histórica, cruzada, torcida e retorcida, zarolha e tendenciosa, nitidamente anticristã, que a cada dia mais se avoluma através de todas as formas de comunicação à disposição dos manipuladores. A quem servem? À verdade é que não é. Nota do Editor: Percival Puggina é arquiteto, político, escritor e presidente da Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e Administração Pública.
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