Sempre haverá questionamentos à fé. Na verdade, a fé cega é usada como arma de dominação. Ela foi - e de certa forma continua sendo - responsável pela alienação dos menos favorecidos. Sem essa "fé" alienada incrustada no povo, os dominadores nunca teriam tido êxito. No entanto, ninguém consegue viver sem fé, sem uma ideia, sem acalentar um sonho. Sem isso o homem torna-se um ser frio e sem alma. Sou contra a alienação via fé cega. Mas acho correta e necessária a fé intuitiva do povo. A fé que nasce com o indivíduo. A fé em Deus, a crença na Força Superior. De vez em quando releio o romance "Zorba, o Grego", de Niko Kazantzakis, e assisto ao filme e vibro com a interpretação notável de Anthony Quinn. Há no romance algo que já coloquei numa mal traçada que adoro. É uma discussão de Zorba com seu patrão, um intelectual, sobre a fé. Zorba embatuca o sujeito que não acredita na fé, contando uma historinha do seu avô, um sujeito gozador. Ele foi à Terra Santa. Quando voltou, um amigo dele, um ladrão de cavalos que nunca fizera nada de honesto na vida, lhe perguntou se o compadre não tinha trazido um pedaço da Santa Cruz do sepulcro para ele. O gozador não teve dúvida, disse que sim, que jamais teria esquecido disso, que ele fosse à noite a sua casa, levasse vinho e um leitãozinho assado, que ele lhe entregaria o presente. Chegam em casa, o gozador retirou uma lasquinha da porta carcomida, do tamanho de um grão de arroz, colocou num pedacinho de algodão e embebeu de azeite. Quando o compadre ladrão de cavalos chegou com o leitãozinho assado e o vinho, trazendo também o padre (não poderia faltar um religioso, para comer e beber), o gozador lhe entregou a lasquinha da porta. O cara se ajoelhou e dependurou a relíquia num cordão e botou no pescoço. Depois comeram e beberam. Desse dia em diante, o ladrão de cavalos virou outro homem, foi combater nas montanhas, valente, decidido, audaz, corria em meio às balas, sabia que estava com o corpo fechado porque tinha no pescoço um pedaço da Santa Cruz. Que bala poderia atingi-lo? E Zorba dá o xeque-mate no intelectual: "A ideia é tudo. Você tem fé? Então uma lasca de porta velha vira uma santa relíquia. Você não tem fé? A Santa Cruz todinha vira porta velha". A ideia é tudo. A ideia e a fé. Inté.
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