O chefe da Casa Civil, José Dirceu, reuniu-se no Rio em maio com a chamada "classe artística", em especial com a elite do "pessoal do cinema", sempre ansiosa por dinheiro de graça, regulamentações coercitivas e novos privilégios. A cobertura fotográfica do encontro, exposta em caderno cultural de jornalão carioca não poderia ser mais reveladora: de um lado, o ex-guerrilheiro amigo de Fidel, mangas arregaçadas e dedos indicadores em riste, se destaca incisivo e sólido; de outro, Chico Buarque de permeio, aparecem os caciques cinematográficos, entre sonolentos e inquisidores, mas visivelmente contrariados, de certo, com as justificativas protelatórias de Zé Dirceu. Para quem, de algum modo, é versado nas técnicas stanislavisqueanas de interpretação, o subtexto vazado pelo ministro é expressivo e claro: "Não há grana!". Desde que os militares assumiram o poder, em 1964, mais especialmente com a instituição do AI-5, datado de dezembro de 1968, a economia do cinema brasileiro tornou-se um acontecimento político e, sob a empenhada batuta do General Golbery (segundo Glauber Rocha, o "Gênio da Raça"), o chefe da Casa Civil dos governos militares de Geisel e Figueiredo, transformou-se em definitivo numa atividade (artificial) sustentada pelos cofres públicos, vale dizer, amparada no saqueado bolso do contribuinte. O general Golbery era o estrategista do regime autoritário. E, na sua teoria, a coerção revolucionária de 64, sedimentada na repressão ditatorial, para se manter, deveria encontrar uma "válvula de escape", que se daria, de forma implícita e demonstrativa na "cooptação" política da classe artística, notadamente na área do cinema, segundo ele, detentor de "formato transnacional". Assim, no seu entendimento, a Embrafilme passaria a funcionar como dispositivo estratégico capaz de descomprimir de forma visível a "panela de pressão" do sistema autoritário, com os recursos dos cofres públicos abastecendo a cornucópia insaciável. Neste jogo corrupto, embora personalidades "progressistas" da atividade tenham sido consideradas à época "vendidas ao sistema" - a estratégia do General funcionou porcamente mas, de lá pra cá, percorridos mais 40 anos, mesmo depois de encerrado o regime ditatorial, a grana predatória continuou a correr fácil para o cinema, a despeito da carência de recursos para investimentos prioritários. Golbery, digo, Zé Dirceu, pelo que se informa, conciliou, no encontro, a agressiva retórica mobilizadora do patrono Lênin com a dura franqueza udenista. Transitando entre o conselheiro indutor e o realista acachapante, o chefe da Casa Civil admitiu a maior hipertrofia do Estado no setor, concitando os membros da corporação a exercer pressão ("mobilização profissional das massas", no ideário do criador da URSS) sobre o Ministério da Cultura, ao tempo em que descortinou a dramática realidade econômica que garroteia os cofres públicos federais: - "O governo arrecada R$ 495 bilhões anuais, mas 80% são para pagamento de pessoal, Previdência e juros. No fim das contas, sobram pouco mais de R$ 11 bilhões para investir. Este ano - concluiu -, como a arrecadação não vai aumentar, o governo priorizou transferência de renda e reforma agrária (leia-se dinheiro para o MST) - e alguém vai pagar a conta do que vai faltar". No entendimento dos caciques do cinema, segundo se apreende da leitura da matéria, Zé Dirceu abriu a perspectiva de maiores recursos para o setor, no futuro, caso os membros da atividade se empenhem na viabilização ("agit-prop") da proposta formulada pelo "Itamaraty vermelho" (de autoria dele próprio, Dirceu, e de Aurélio Garcia, Samuca Guimarães e Celso Amorim), que é a de concentrar a política cultural atrelada ao projeto de "integração latino-americana" (no fundo e, por extensão, "revolucionária e bolivariana"): - "Organizem-se e cheguem a nós", convocou (coisa desnecessária, de resto, pois o cinema no Brasil é todo ele de esquerda) o chefe da Casa Civil, que a qualquer momento desengavetará para apreciação do Congresso a nova versão do sonhado projeto totalitário da Ancinav. De tudo o que disse o ministro, o que mais impressiona é a revelação brutal de que, ao cabo de tudo, efetuados os gastos com o custeio da máquina burocrática, Previdência e juros, ao governo só reste, depois de espoliar a nação com uma inexcedível carga tributária, a quantia de R$ 11 bilhões para solucionar os problemas de estradas, transportes, habitação, energia, segurança, desenvolvimento e outras áreas ministeriais (são 35, ao todo). O fato se torna ainda mais absurdo, mesmo indecoroso, quando no mês de maio, em Brasília, um burocrata do Minc declarou que, este ano, o setor já tinha sido beneficiado com mais de R$ 1 bilhão, a partir de isenções fiscais e concessões - o que soa para a sociedade como um alarme, visto que o governo Lula, agindo assim, deixa de fazer investimentos prioritários e socialmente úteis para acomodar, em contraposição, uma atividade elitista e de retorno econômico zero. Três dias depois de se encontrar com o "pessoal do cinema", Zé Dirceu, numa espécie de "autocrítica", disse num seminário em São Paulo que a teoria (na certa, histórica e materialista) não é suficiente para solucionar os desafios impostos pela realidade: "Existe um grande problema no projeto de desenvolvimento nacional que é a realidade, a vida. A vida geralmente é dura e a realidade é mais complexa do que as nossas teorias". Não há o que discordar da descoberta, ainda que tardia, de Zé Dirceu. E ele ajudaria em muito a "dura vida" do povo brasileiro se, ao invés de investir bilhões em atividades parasitárias, mandasse a corporação do cinema se virar no mercado, como faz a maioria dos trabalhadores, empresários ou não. Para citar um exemplo de fácil verificação, basta seguir a prática estabelecida pelo seu amigo Fidel Castro, em Cuba, que solta grana apenas para a produção de dois (2) filmes anuais. Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.
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