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SEÇÃO
Crônicas
09/06/2005 - 13h00
Nós somos nós ou somos as nossas coisas?
Artur de Carvalho - Agência Carta Maior
 

Foi ficando cego. Não foi uma coisa assim, de um dia para o outro, então ele não deu importância. Primeiro, começou a ter dificuldades para enxergar as coisas de longe. Aquelas placas nas rodovias, o que estava escrito naquela faixa, está verde ou vermelho, esse tipo de coisa. Passou a ir a pé para o trabalho, mas começou a tropeçar nas calçadas, nos buracos e nas escadas. O oftalmologista deu uns dias de licença. Como as imagens do cinema e da TV ficavam muito embaçadas, passava os dias lendo jornais, livros e revistas. Até que as letras mais miúdas começaram a se misturar. No começo até que não se incomodou muito, porque já estava acostumado a só ler as manchetes. Mas as manchetes logo também se tornaram ilegíveis. Encostando o nariz no jornal, ainda dava para ver uns detalhes maiores das fotografias, mas em pouco tempo isso também acabou. Ficou cego.

Passou a ouvir músicas. Músicas clássicas. Bizet, Schoenberg, Haendel, umas valsas de Strauss. Mas não demorou muito para as notas mais baixas ficarem difíceis de se ouvir. Teve que trocar para outro estilo, com menos detalhes, e que pudesse ser ouvido um pouco mais alto. Sex Pistols, Black Sabbath, Judas Priest e Iron Maiden. É claro que essa barulheira toda só piorou o problema. Ficou surdo.

Começou a cheirar as coisas. Todos os dias, encomendava alguns condimentos, e passava o dia cheirando e tentando adivinhar o que era. Canela, folhinhas de hortelã, anis, açafrão, baunilha, cominho, cravo-da-índia, curry, erva-doce, gengibre, mostarda, noz-moscada, páprica, pimenta-do-reino. Depois passou para as flores, mas os aromas suaves já não eram captados com tanta facilidade. Começou a confundir margaridas com tulipas, crisântemos com bocas-de-leão, gardênias com narcisos. Até o dia em que, na hora do almoço, confundiu uma bacalhoada com morangos silvestres, e percebeu, não sem um leve chacoalhar de ombros, que não apenas seu olfato, mas também seu paladar, haviam desaparecido completamente.

Notou que alguém lhe tocou a mão. Depois, passou a sentir um cafuné. A mão (era uma mão?) deslizava por seus cabelos, arrepiava-lhe o pescoço. Todos os dias, alguém passava por ali e lhe tocava a pele. Vez ou outra, seu sexo. No entanto, e ele já esperava por isso, os toques foram se tornando imperceptíveis e, a cada dia, era necessário um pouco mais de pressão, até que passou a sentir apenas os beliscões, os tapas e os cortes com lâminas afiadas. Até que não sentiu mais nada.

Achou graça. O mundo não estava mais ali. Mas ele ainda estava.

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