Uso exagerado das medidas provisórias estabelece desagradável analogia com os decretos-leis do regime de 64.
Há 21 anos, o Congresso Nacional, resgatando as mais profundas tradições democráticas do Poder Legislativo, colocava ponto final no regime de exceção instalado em 31 de março de 1964. Utilizando o feitiço da eleição indireta contra o feiticeiro inconstitucional, deputados e senadores sacramentaram a decisão já adotada pelo povo nos memoráveis comícios das "Diretas Já" em 1984: elegeram Tancredo Neves à Presidência da República. Desde então, a democracia brasileira, reconstruída sem ódios e revanchismos, evoluiu de forma significativa. Verificou-se o fortalecimento das instituições e da legalidade, que resistiram a graves intempéries, como a inflação descontrolada, o impeachment de um presidente da República, crises internas e externas. Nossas eleições têm sido exemplares, tanto em sua probidade, eficiência da Justiça Eleitoral, comportamento sério e responsável do eleitorado e postura dos partidos e dos candidatos, com raras e desonrosas exceções. A redemocratização nas duas últimas décadas do Século XX configura-se, inegavelmente, como uma das maiores conquistas populares nos 505 anos da história oficial da Nação. Sua gênese manifestou-se nos anseios legítimos de um povo cansado da tutela estatal, da ausência de direitos e do desrespeito à prerrogativa de participar como sujeito do processo histórico e político. A causa foi encampada por políticos e partidos comprometidos com os ideais da democracia. Nos palanques, câmaras municipais, assembléias legislativas e Congresso Nacional, as forças progressistas uniram-se, acima de siglas, para resgatar a democracia. Vinte e um anos! Maioridade institucional? É verdade, mas o sistema político brasileiro precisa avançar ainda mais, removendo alguns resquícios e vícios dos regimes de exceção que permearam boa parte da história da República. Nesse sentido, é imenso e inalienável o compromisso dos políticos e partidos participantes daquele inesquecível movimento redentor das liberdades, em 1984. É necessária, por exemplo, a reforma política, com a instituição do voto distrital misto, regras menos voláteis quanto à fidelidade partidária e outros aperfeiçoamentos no Código Eleitoral, remanescente de 1965, para se evitarem, a cada pleito, regulamentações às vezes casuísticas. Este processo, contudo, demanda mais tempo e não deverá ser efetivado antes das eleições de 2006, pois implicará a votação de emendas constitucionais, exigindo maioria qualificada e aprovação em dois turnos, em sessões específicas no Senado e na Câmara Federal. No entanto, há atitudes democráticas que dependem exclusivamente do posicionamento de quem está no poder e não exigem a votação de novas leis ordinárias e emendas à Constituição. Rousseau, aliás, já observava: "Concebo na espécie humana duas formas de desigualdade / necessidade, uma que chamarei de natural (...) e outra que se pode chamar de moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e porque é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens". Exemplo tácito de necessidade da Nação que poderia ser atendida única e exclusivamente pela vontade política - ou consentimento - do presidente da República encontra-se nas medidas provisórias. Estas são ferramentas institucionais à disposição do governo, destinadas a viabilizar providências urgentes e inadiáveis. Porém, extrapola-se atualmente no uso desse dispositivo, utilizando-o à revelia como rotineiro meio de legislar, inclusive em matéria ordinária. Ao adotar tal postura, o Governo Federal nivela as medidas provisórias aos execráveis decretos-leis da época da ditadura, por meio dos quais o Executivo usurpava do Parlamento a sagrada prerrogativa de legislar. Ora, não é exatamente isto que está ocorrendo em Brasília, onde, neste exato instante, nada mais nada menos do que dez MPs trancam a pauta do Congresso Nacional? Ante tal situação, é inevitável voltar no tempo... Em 16 de abril de 1984, há exatos 21 anos, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, 1,7 milhão de cidadãos reivindicavam em uníssono as "Diretas Já" e condenavam as práticas autoritárias e casuísmos administrativos do Governo Federal, dentre eles o decreto-lei. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, naquele outono, em que as bandeiras brasileiras sustentaram o verde no cenário nacional, V. Exa. não estava lá, ao lado de Tancredo Neves, Franco Montoro, Mário Covas, Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Leonel Brizola e tantos outros líderes políticos que encamparam o clamor do povo? Nota do Editor: Antônio Carlos Pannunzio, deputado federal, é o presidente do Diretório Estadual do PSDB em São Paulo.
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