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Opinião
11/06/2017 - 07h59
A poesia abre asas ao vento
Marta Morais da Costa
 

“Não há poesia sem asas ao vento”
Geraldo Carneiro, poeta brasileiro

A literatura ocidental nasce da fonte da poesia. Homero cantou e registrou em versos oceânicos a história de Tróia e do mundo grego, incluindo mitologia, geografia, costumes, e, acima de tudo, a língua grega e sua música eterna.

No mundo terreno e mais cotidiano, a poesia embala os cantos de trabalho, as cantigas de ninar, as declarações de amor e de ternura, as primeiras lições de comportamentos e de tabuada. O cérebro infantil reage positivamente aos estímulos do ritmo e da sonoridade que veiculam as ideias, os ensinamentos e os conselhos.

As mais diferentes culturas armazenam em quadras, em poemas, em epopeias monumentais a sabedoria adquirida pelos povos ao longo do tempo e das experiências históricas. Portanto, há na poesia um caráter ancestral e histórico que se prolonga no tempo.

Muitas vezes, algumas afirmações sobre poesia são ouvidas entre leitores em geral e entre professores em particular. Duas delas entrarão neste pequeno texto que desde o início se propõe a demonstrar que a poesia é um gênero literário específico, especial e educacional no sentido amplo: o de servir de mapa e itinerário para as viagens da sensibilidade, da beleza e do conhecimento do mundo.

1. Poesia é difícil; por isso tem poucos leitores.

Uma das cantigas de roda mais bonitas de nosso folclore tem versos singelos e emocionantes:

“O anel que tu me deste
era vidro e quebrou.
O amor que tu me tinhas
era pouco e acabou”.

Trata da comparação entre o vidro e o amor: ambos se quebram, ambos acabam. Mas a beleza está também nos sons abertos dos versos com as palavras anel, deste, amor, tinhas em contraste com os sons fechados e tristes de quebrou, pouco, acabou. A poesia é arte que procura associar o sentido das palavras com seus sons e sua musicalidade. Observar e compreender essa relação vai além de fazer resumo ou achar a ideia central.

Observe a intensidade que Cecília Meireles sabe provocar ao repetir sons e brincar com a posição das palavras na sensação refrescante e musical de um rio:

“Som
frio.
Rio
sombrio.
O longo som
do rio
frio.

O frio
bom 
do longo rio.”

(MEIRELES. Rio sombrio. In: Isso ou aquilo)

As palavras se alongam ou se comprimem à medida que prevalece a imagem visual/sonora do rio ou seu percurso longo. Os sons agudos da vogal i arrepiam o leitor com seu frescor.

O leitor de poesia precisa observar as palavras em sua materialidade, em sua fisicalidade (som, desenho das letras, posição, significados). Talvez esta necessária observação e sensibilidade sejam confundidas com dificuldade. Mas são, na verdade, aprendizagens de leitura capacidades a serem desenvolvidas. É possível ouvir a poeta Adélia Prado afirmando: “A poesia oferece a realidade e sua beleza. Esta é sua força, seu conforto, sua alegria.”

2. Poesia serve para falar de amores e dores.

Nem sempre. José Paulo Paes brincou com poemas e palavras, com imagens e sons, com assuntos e personagens, sempre descobrindo versos em novas formas:

“Como dizia
aquele bem-te-vi que ficou míope:
“Bem te via... bem te via”

(PAES, Correção. In: É isso ali!)

Poesia sentimental ou repleta de adjetivos bonitos e vazios, de frases retumbantes ou de rimas forçadas, de assuntos sempre tratando de amores perdidos é de uma chatice sem fim. O escritor italiano Umberto Eco ironizou esse tipo poema ao afirmar: “Todos os poetas escrevem poesia ruim. Os poetas ruins as publicam, os poetas bons as queimam.”

De fato, publicar poemas ruins é contradizer toda a beleza da poesia. Aliás, a diferença entre os termos poema (um texto em formato de versos e estrofes) e poesia (a arte de extrair das palavras o máximo de efeitos e de beleza que surpreendem o leitor por seu ineditismo) já indica a diversa qualidade dos textos que se denominam – muitas vezes de modo impróprio – poesia. Poemas em formato de listas de verbos com rimas repetitivas encontram-se às centenas em livros e páginas da internet. Algo como:

Luar
brilhar
estelar
pomar.

Distante
bastante
da gente
que sente.

Fica evidente a pobreza vocabular, o nenhum aproveitamento de sentidos de conotação, de relações inovadoras entre os versos, as rimas forçadas e pobres em criação. Listar palavras só porque elas podem ocupar espaços de versos não é construir poesia. É apenas um equívoco textual. Faltam asas de liberdade criadora. O vento não sopra para movimentar o texto em direção aos olhares atentos do leitor.

A poesia é como “A orquídea” do poeta Elias José:

“A orquídea
é diferente
é superior.

Jeito de artista
de muita linha,
ela é rainha,
é manequim.

Cheia de fama,
formosa dama,
se esconde
e ninguém vê.

Não é flor
de todo dia,
mas irradia
um não sei
quê.”

(JOSÉ, Orquídea. In: Namorinho de portão.)

A poesia é texto com “jeito artista” para leitores com olhos artistas. Ou como definiu Mia Couto, extraordinário escritor contemporâneo: “A poesia é um modo de abrir portas a essa multidão que foi sendo silenciada dentro de cada um de nós.”. Ela é um convite ao professor: ajude seus alunos a ver com olhos livres e a não silenciar.


Nota do Editor: Marta Morais da Costa, consultora de literatura da Editora Positivo, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela USP. Professora aposentada da UFPR e da PUCPR. Pesquisadora da Cátedra de Leitura Unesco-PUC-Rio. Membro da Academia Paranaense de Letras. Autora de Mapa do mundo (2006), Palcos e jornais (2009), Sempreviva (2009) e Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! (2016) entre outros.

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