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Opinião
15/08/2017 - 05h12
Gypsy, a série
Nivaldo Cordeiro
 

Tive resistência íntima para ver a série da Neflix Gypsy, pois tudo me levava a crer que seria mais uma filmagem para propaganda da causa gay, no caso feminina. A diretora é a mesma do 50 Tons de Cinza. O problema é que o título me puxava, algo me lembrava da cigana da ópera Carmen. Dei o benefício da dúvida e vi. Vão aqui minhas impressões.

Alguns comentaristas não gostaram porque a narrativa é lenta. Ora, a vida é lenta, só nos filmes de ação, em que a humanidade desaparece, que as coisas ganham velocidade sobre-humana, é que tudo corre muito rápido. Aqui se trata de um drama intimista e como tal tinha que ficar no plano da humanidade e sua natural lentidão. O tema é o mergulho da personagem vivida pela bela Naomi Watts, uma psicóloga que descumpre todas as etiquetas e regras da profissão e passa a se imiscuir na vida dos seus pacientes. De fato, como suspeitei, não é um filme pornô, quem quiser ser voyeur terá que ver outra coisa. Não há cenas de nus e todo intercurso homossexual é mais sugerido do que mostrado.

Desde o início gostei e no capítulo 7, quando a personagem vai a um bar construído numa antiga fábrica de caixões, eu achei que estaria diante de um grande filme, cheio de símbolos, contando uma grande história. A cena inicial do episódio, o devaneio da personagem Jean, no qual toca a ária Habanera da Carmen, de Bizet, achei que teria diante dos olhos uma recriação nas telas da ópera, vista a personagem radicalizada na sua feminilidade. A música-tema da série Who Are You When No One is Watching já remetia a esse mergulho nas profundezas da alma feminina. A própria referência à cigana aponta para o feminino “livre”, não cristão, uma forma de ser mulher com viés demoníaco, em que a liberdade consiste precisamente em quebrar as regras, convenções e subordinar tudo e todos aos caprichos do sexo e do amor carnal ocasional. O inovador escrito por Lisa Rubin, a roteirista e produtora, seria colocar a psicologia da Carmen no contexto homossexual. Nesse capítulo, o 7, parecia conduzir para o desfecho operístico.

Ocorre que Carmen aqui entrou como Pilatos no Credo. Uma mera alegoria narrativa, embora inconscientemente a roteirista tocasse no problema numinoso. A citação de Bizet falou mais alto. Por si só o episódio 7 justifica ver toda a trama, mas também o elenco, a direção o segura, a plástica da narrativa. A série é um filme sofisticado.

Jean foi se encontrar com Sidney (vivida pela bela Sophie Crookson) para o entregar-se total aos prazeres do encontro amoroso, do qual até então fugia. Um dos encantos da narrativa é que parecia que a sedutora era a Sidney, mas descobrimos ao final que ela é a seduzida. Na casa dela há um momento em que Jean abre uma gaveta e vê algumas balas de pistola, o que sugeria para o desfecho operístico ao estilo da Carmen. Pena que a roteirista, embora intuísse e tocasse de relance esse tema do feminino arquetípico, preferiu o desfecho banal dado pela psicologia comportamental, ficando inteiramente na superfície dos fenômenos humanos.

Evidente que a relação causa/efeito que é feita entre bullying e os desvios de comportamento de Jean não explicam a riqueza da personagem e, menos ainda, o problema humano profundo. O elemento perene da psique e o flerte com o mergulho nos pecados e no mal estão além disso. Uma Carmen com experiências homossexuais seria dar uma dimensão ampliada a essa forma feminina poderosa e muitas vezes tratada na literatura. A roteirista deixou escapar a chance de fazer uma obra notável. Quando, no capítulo 7, Jean diz para Sydney “Você é perfeita”, como só a deusa do Amor é perfeita, retratou o máximo da intuição. Daí em diante recuou para a banalidade.

Toda grande obra de arte trata desse assunto, de uma maneira ou de outra. O intercurso homossexual e intergeracional aqui retratado é apenas aspecto particular da problemática. Veja-se que o principal livro de filosofia a moldar a modernidade, Da Natureza, de Lucrécio, o porta-voz para a modernidade da filosofia de Epicuro, começa com um hino a Vênus bastante sensual. Vivemos tempos do renascer do paganismo que tem na deusa do Amor sua inspiração e sua meta. Ela é o próprio mal que parece ser o bem, a personificação da própria filosofia que propõe a busca do prazer e a fuga da dor, basicamente o oposto da forma de ser do cristão. Nesse aspecto, a série é um hino a Vênus também.

O Amor e o Belo esteticista andam de mãos dadas. Homens e mulheres vivem o fascínio dessa coisa numinosa e dela padecem, porque não passam de ilusão pagã que leva a desfecho destrutivo. Na ópera Carmen a morte da cigana foi natural. Lisa Rubin fugiu de falar da morte, tudo se resumiu a um discurso meio que confessional de Jean, ao final. O amor homossexual é evidentemente produto desse fascínio e identificação com o próprio Amor, com a própria deusa, na qual homens querem ser como mulheres e mulheres querem ter a Outra em si e para si. Nesse mundo a masculinidade é um desvalor, um acessório, é sempre Marte bobão correndo atrás da irmã sedutora. Algo que parece irresistível, basta ver como o fenômeno se processa nos tempos atuais. As multidões, qual Mênades enlouquecidas, buscam desesperadamente a forma perfeita da deusa e quase sempre conseguem o seu contrário, como vemos nas esclarecedoras passeatas gays. Associado a isso, temos o desfecho trágico. Na Carmen de Bizet é o punhal fatal e impiedoso à porta da arena dos touros que mata a fonte do fascínio, em busca da libertação. Lisa Rubin tangenciou o mais profundo, mas tremeu diante do fundo abissal. Descambou para o psicologismo barato.

[Bem a propósito a discussão inaugurada por Donald Trump sobre o papel dos transexuais e gays em geral na forças armadas, ampliado nas redes sociais para o papel feminino na guerra. O reduto marciano por excelência, a caserna, foi invadido pela deusa do Amor no corpo das mulheres e dos homens gays engajados. Está tudo dominado pela psicologia do feminino, daí a relevância e atualidade de obras como Carmen e como esta série, ainda que Gypsy explore o tema de maneira superficial.]

No auge dos seus devaneios Jean compra o quadro que retrata uma mulher suspensa no ar, sem peso, flutuando no éter. É o súcubo da deusa elevado à condição angélica. Lisa Rubin não soube o que fazer com material tão rico. Uma pena.

Em paralelo, há a trajetória do marido, que se mantêm relativamente íntegro ao resistir aos encantos da bela negra Alexis (Melanie Liburd), embora ele mesmo com Jean, a esposa, esteja também no plano inferior ao fazer do uso rotineiro de drogas o elemento de lazer. No fundo, diz-nos Lisa Rubin, está tudo dominado pelo mais baixo e dele só o infame pode emergir. As drogas funcionam como instrumento de fuga e de ascensão ao éter habitado pela deusa sedutora, ou seja, puro instrumento de alienação do real, que acaba por fazer a pessoa mergulhar fascinada para o irresistível e trágico chão.

A história da filha com tendência masculizante é acessória e fora do contexto do conjunto, mas também poderia ser utilizada para a exploração mais profunda da personagem. Infelizmente faltou erudição à roteirista para compor o quadro como uma obra prima da TV. Uma lástima.


Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro (www.nivaldocordeiro.net) é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais.

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