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Crônicas
22/06/2005 - 18h02
Rosebud
Luiz Guerra - Agência Carta Maior
 

Ainda vejo nitidamente na tela da memória a tarde em que ela chegou, em meados de 1968, mas já não me lembra o dia em que se foi para sempre, depois de conviver comigo bem uns cinco ou seis anos numa relação das mais criativas, embora meus pais, durante todo esse tempo, fizessem questão absoluta de mostrar o quanto se sentiam incomodados com sua presença no melhor quarto da casa, com varanda coberta, portas francesas e minicloset.

Rejeitada por um industrial falido do bairro de Marechal Hermes, no subúrbio carioca, a grande mesa de aço inoxidável tomava para si metade do aposento, sem falar na imponente cadeira giratória que a acompanhava, digna do senhor de Xanadu. Gavetas e gavetões abriam e fechavam como sobre rodinhas, e enchiam o apartamento, especialmente tarde da noite, com os sons de um escritório particular em ação, com o seu cronista em potencial ali sentado, fazendo gemer não os prelos, como lemos em Balzac, mas as molas da cadeira, que, desde então, nunca mais viram uma camada de graxa.

Ali rascunhei, em estado febril, meus poemas panfletários, derrubando todos os milicos do país só com a fúria dos versos; ali copiei, linha a linha, toda a "Chartreuse" de Stendhal, surrupiando um conselho que André Maurois dera a Sartre e que este talvez não tenha seguido; ali estudei minuciosamente o "Protágoras" platônico, essa deliciosa farsa filosófica; ali sonhei, meditei, namorei... sim, ali dei um amasso sensacional em minha primeira namorada, valendo-me sobretudo do design meio anatômico da cadeira.

Infelizmente, exceto por mim e meu irmão caçula, que já começava a rabiscar os seus próprios versos - também panfletários, diga-se de passagem -, ninguém mais na família lançava à pobre mesa o mais escasso olhar de carinho. Para eles, nem era mesa, era um trambolho que precisava ser retirado urgentemente dali. Mas, naquela época, eu rosnava bem melhor do que hoje, e ela foi ficando.

Por força de reuniões de cunho político, meu irmão e eu começamos a nos ausentar mais de casa e nos descuidamos completamente do grande móvel de aço. Seu tampo enorme, onde tantas vezes promovemos campeonatos de pingue-pongue e futebol de botões, onde chegamos inclusive a dormir, e bem, em noites de muita gente na casa, logo começou a abrigar tudo o que não mais servia no apartamento, tornando-se praticamente, ao sabor da raiva com que jogavam as coisas imprestáveis ali em cima, uma verdadeira instalação pós-moderna. A própria cadeira, um belo dia, se viu no meio das tralhas empilhadas, sacramentando, sem piedade, a nossa derrota.

Orson e Welles (assim tinha passado a chamar aquela dupla de aço) voltaram para as mãos do mesmo industrial fracassado, quase um mendigo então, e ele nem pensou duas vezes: contratou uma carroça puxada a cavalo e vendeu tudo no ferro-velho. Quando a cadeira foi atirada na caçamba, vi meu nome e o de minha namorada, a do amasso, desenhados nos fundilhos do assento.

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