Muitos profissionais, especialmente os que se proclamam não políticos, sem ideologia, sintonizados com a verdade e a objetividade jornalística, costumam repudiar a militância em Jornalismo, como se o compromisso com idéias ou causas fosse um equívoco. A maioria deles, no entanto, pratica a militância, mesmo que não dêem conta disso. Até porque estar neutro é uma condição absolutamente militante. Não se pode ficar neutro quando se contempla a injustiça social, quando se dá de cara com governantes corruptos, quando se surpreende lobbies poderosos afrontando o interesse público ou quando se flagra madeireiros devastando a Amazônia brasileira. O problema está em definir o que seja militância no fazer jornalístico. Alguns provavelmente confundem militância com filiação partidária e, querendo se mostrar distantes das mazelas praticadas pelos partidos brasileiros, optam por não assumir essa condição. Há quem acredite que militância é o atributo que une jovens empunhando bandeiras pelas ruas, gritando slogans sem sentido, como os moços da TFP - Tradição, Família e Propriedade que nos atormentavam nos faróis, em tempos idos, contra o "dragão do comunismo". Há pessoas que identificam militância com o MST e, seduzidas pelos jornalões, imaginam que, de uma hora para outra, centenas de simpatizantes virão tomar as suas propriedade, adquiridas com muito suor e lágrimas. Militância em Jornalismo não pode e não deve ter essa leitura. Ser militante não é fazer parte de uma "tribo" qualquer e andar em grupo tentando convencer os outros a adotarem posições extremadas. Ser militante não é tapar os olhos e desobedecer à razão para não enxergar o outro lado, como se existisse apenas uma única verdade (a que defendemos). Ser militante não significa estar disposto a pegar em armas para fazer valer, a qualquer custo, as nossas convicções. Ser militante significa apenas defender, com coragem, as nossas posições, ainda que elas possam nos criar embaraços junto a patrões ou colegas da redação. O não militante está sempre disposto a abdicar das suas posições para não perder o emprego, para conseguir clientes, para ser aceito em um grupo do qual possa extrair vantagens. O não militante tem uma ética muito particular: busca estar de bem com a maioria e, especialmente, com os que detêm o poder. A militância em Jornalismo significa não abrir mão de investigar, não ser seduzido pelo canto de sereia das pautas encomendadas e dos releases encaminhados por agências competentes a serviço de empresas sem escrúpulos. A militância significa confrontar fontes, suspeitar das notícias que nos são jogadas no colo, enxergar além da notícia. O militante perde o furo, mas não perde a dignidade. Ser militante em Jornalismo Científico significa efetivamente ter compromissos. Em primeiro lugar, o militante deve assumir que a ciência e a tecnologia constituem-se em mercadorias valiosas e que algumas empresas (ou governos) fazem tudo (realmente qualquer coisa) para vencerem os seus adversários. Não se sentem envergonhados em ludibriar a opinião pública e têm justificativas prontas para ações lesivas à sociedade. Em segundo lugar, deve ter presente que os veículos nos quais trabalham, na verdade, são também negócios (hoje, a maioria deles verdadeiros balcões) e que os limites entre a informação e o marketing (no mau sentido) são cada vez mais frágeis. Em geral, estão mais preocupados em conseguir anúncios e, portanto, em atrair os anunciantes do que em oferecer informação qualificada para a sua audiência (leitores, radiouvintes, telespectadores ou internautas). Em terceiro lugar, precisa respeitar a diversidade de idéias e as minorias. O militante não é um "pitbull da informação", embora deva saber morder os fundilhos dos que realmente merecem. O militante persevera, não abre mão dos seus princípios, não defende a tese de que "profissional é aquele que agrada ao cliente, independente de quem ele seja". O militante sabe separar o joio do trigo e não justifica, por quaisquer motivos, o fato de ter recebido dinheiro ou apoio de organizações socialmente irresponsáveis. O jornalista científico (acho que a observação vale para qualquer jornalista) não produz matérias monofontes, obtidas em entrevistas coletivas, regadas a vinho e camarão, nem anda de braços dados com a indústria tabagista, a indústria de armas e boa parte da indústria agroquímica, da indústria da saúde. Não tenta convencer a sociedade de que a Souza Cruz ou Philip Morris são socialmente responsáveis (porque matam milhões por ano com os seus produtos e insistem em propagá-los), de que a Monsanto quer na verdade matar a fome com os transgênicos e que está nos poupando do uso intensivo de agrotóxicos (quando, na prática, está buscando, obsessivamente, o monopólio da sua linha "Round up" para agradar os seus acionistas, ávidos por lucros). O jornalista científico militante identifica os monopólios (de sementes, de medicamentos, de agroquímicos) e consegue perceber as diferenças entre a alternativa do software livre e a gigante Microsoft (ainda que o Bill Gates se coloque como um mecenas da humanidade). O jornalista científico militante está interessado não apenas na grande descoberta, mas no impacto que ela possa acarretar para a sociedade. Ele contextualiza, ele busca perceber além do fato em si e não adota, nunca, uma posição ingênua. É cético, por excelência, porque admite que não existe verdade imutável, como tem aprendido, ao longo da sua vida, com a história da ciência. Ele separa os cientistas do bem dos cientistas do mal (hoje, em sua maioria, voltado para os interesses militares e comerciais) e desconfia das teorias revolucionárias e da lábia fácil dos pseudocientistas. O jornalista científico militante resiste às investidas e à chantagem dos poderosos e denuncia o assédio dos grandes interesses. Militância é um compromisso. O jornalista científico que não tem compromisso algum costuma fazer o jogo dos outros. Ele vende a sua pena e a sua fala sem se aperceber disso. Ele é um ingênuo, porque acredita que está contribuindo para o progresso da ciência e da sociedade, quando está se reduzindo a um mero porta-voz de empresas, governos e pessoas mesquinhas. Para não ser taxado de radical, prefere ficar em cima do muro. É um omisso, um acomodado, um covarde. Não tem espinha e se curva facilmente para obter favores. A imprensa brasileira precisa de mais militância, de menos oficialismo, de mais compromisso. Talvez seja mais fácil não ter posição, submeter-se ao poder, fingir que nada vê e nada ouve. Mas essa postura encerra uma armadilha perigosa. Quem perde a dignidade, não serve pra coisa alguma. No fundo, os empresários inescrupulosos, os poderosos, os patrões autoritários respeitam mesmo os que militam. Por isso, empenham-se tanto em destruí-los. O não militante é como um outdoor velho, perdido na paisagem. Ninguém liga pra ele, embora ocupe espaço. É apenas um nome a mais na folha de pagamento. Um dia, pela sua absoluta inutilidade, será descartado. Militantes não são fáceis de substituir, mas gente sem coragem e sem caráter se encontra em qualquer esquina. Nota do Editor: Wilson da Costa Bueno é jornalista.
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