"O hábito de tudo tolerar pode ser a causa de muitos erros e muitos perigos" Cícero, Marcus
Já faz algum tempo que o substantivo tolerância passou a ser uma das palavras da moda entre os adeptos do discurso "politicamente correto". Termo de conteúdo forte e apelo fraternal e humanitário, malgrado muito pouco compreendido em toda a sua complexidade, a tolerância tem sido indiscriminadamente utilizada como "trampolim" para se alcançar os mais diversos e inconfessáveis objetivos. De acordo com o Aurélio, tolerância significa "suportar com indulgência", mas eu ainda prefiro a definição clássica que fala de "convívio com as diferenças". É necessário, ainda, sublinhar o fato de que para tolerar alguém ou alguma coisa, é preciso, antes, "divergir" ou "desgostar". Em outras palavras, a virtude da tolerância pressupõe uma discordância prévia, pois, caso contrário, não haveria porque tolerar. Um outro aspecto importante é a conexão (talvez melhor seria falar em desconexão) que existe entre tolerância e verdade. Quando esta é conhecida com alguma certeza, aquela, necessariamente, deixa de ser objeto. Já houve tempo, por exemplo, em que as pessoas precisavam ser extremamente tolerantes com as excêntricas (para a época) idéias astronômicas de Galileu. Nos dias de hoje, por outro lado, somente um louco ousaria discordar delas. A virtude da tolerância está relacionada, basicamente, com a diversidade de opinião e de crença. John Locke, em sua famosa Carta Sobre a Tolerância dizia que "não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se tem manifestado no âmbito Cristão por causa da religião". De fato, é no âmbito das religiões que costuma manifestar-se mais agudamente a intolerância, se bem que, mais recentemente, ela tem sido muito comum, também, no campo das idéias políticas e econômicas. O que considero mais importante, entretanto, é que a tolerância só pode ter por objeto pessoas ou idéias, nunca ações ou atitudes. Tolerância frente a ações delituosas ou desrespeitosas transforma-se em cumplicidade, passividade ou acomodação. Para Karl Popper a tolerância se desprende da falibilidade humana, uma vez que a atitude oposta, o dogmatismo ou a crença de que somos infalíveis, nos predispõe à intolerância. O pensador austríaco resume a atitude tolerante nos seguintes termos: "Creio que tenho razão, mas posso estar equivocado e ser você quem tenha razão; em todo caso, discutamos, pois assim é mais provável que alcancemos a verdade do que se meramente insistirmos os dois em ter a razão". Para Popper, esta disposição para conceder o benefício da dúvida no momento de defender nossas idéias, reconhecer que podemos estar equivocados e, sobretudo, reconhecer que o outro pode ter razão, ainda que inicialmente pensemos o contrário, é uma atitude de conseqüências inestimáveis para os assuntos humanos. Esta disposição supõe que façamos uma diferenciação importantíssima entre os argumentos sustentados por alguém e a pessoa que os sustenta. Isto implica que podemos atacar os argumentos, sem deixar, por isso, de respeitar a dignidade da pessoa que os profere. Apesar de sua defesa intransigente da tolerância o pensador austríaco reconheceu que essa virtude também tem os seus limites e assim definiu o que chamou de paradoxo da tolerância: "se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância". Estas considerações acerca da tolerância e os seus limites vieram-me à mente em função dos últimos acontecimentos políticos e, principalmente, devido à reação patética dos auto-intitulados partidos de oposição, que partiram para uma estratégia, no mínimo controversa, em defesa de uma pseudogovernabilidade, sem se dar conta de que essa atitude, digamos, condescendente, é extremamente perigosa para o futuro da nossa insipiente democracia. Não deve haver tolerância para com o roubo, a inépcia, a mentira, o engodo, a demagogia. Assim como não se pode prejulgar ninguém, não devemos tampouco deixar de ir às últimas conseqüências para descobrir a verdade e punir os responsáveis, sejam eles quem forem. Afastar da investigação o presidente da república, com base simplesmente em sua "ilibada biografia" ou em nome de uma pretensa governabilidade, pondo de lado, à priori, um eventual processo de impeachment, seria o mesmo que compactuar com o crime, o que nada tem a ver com tolerância, mas com mera cumplicidade. Não dá para entender, também, esse "acordo de cavalheiros" para "congelar" a CPI do Waldomiro, depois que o STF determinou a sua instalação. O que querem os congressistas da nossa "oposição"? Proteger José Dirceu? Poupar o presidente "Lulla" de uma eventual (quase certa, a meu ver) vinculação com toda a sujeira fabricada diante das suas barbas, dentro do próprio Palácio do Planalto? A coisa se torna ainda mais grave a partir do instante em que os protagonistas de tantos escândalos acenam para a sociedade com uma estratégia de defesa (contra-ataque, se preferirem) absolutamente perigosa, para dizer o mínimo. Primeiro, fingem-se de vítimas e, através de discursos incendiários, difundem a existência de supostas conspirações golpistas por parte das imaginadas "elites retrógradas" e dos "interesses escusos". O passo seguinte será recorrer ao velho sofisma segundo o qual, ante as enormes pressões das "elites fascistas", "não lhes resta outro remédio" senão "defender a vontade da maioria que os elegeu". Está armada a cena para as mais variadas agressões às liberdades individuais (vide o exemplo recente de Hugo Chavez). E seja o que Deus quiser. Não! Contrariamente ao que pensam os adeptos dos panos quentes, não há que transigir com os intolerantes, como ensinou Popper. Quando, numa democracia, os inimigos da sociedade aberta ultrajam as normas elementares de convivência; quando transformam o debate racional em puro exercício sofístico (especialidade do PT); quando pretendem substituir o império da lei e a estabilidade das instituições democráticas pelo recurso abjeto de simuladas "mobilizações sociais" ou outras formas de pressão extralegais, esta democracia está em perigo. Nesse caso, não se pode dar tempo, nem espaço, para que os vândalos políticos de hoje se transformem nos déspotas de amanhã. Devemos destruir as sementes do totalitarismo enquanto elas são apenas isso: sementes. Nota do Editor: João Luiz Mauad é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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