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SEÇÃO
Crônicas
30/06/2005 - 14h12
A turma do Leocádio
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Democracia.
A dita era mais dura
do que parecia.

Leocádio está com medo de sair de casa. Gostava de subir na tribuna, dizer-se democrático, empunhar bandeira, espalhar panfletos e discursar no alto-falante. Já foi considerado um valente, mas agora perdeu suas armas e a coragem. Porque a coragem é mais uma questão de companhia do que de hereditariedade. E Leocádio está só.

Não sabe o que está passando nos cinemas e não faz idéia do que signifique a palavra download. Tornou-se impossível, para homens desse naipe, garantir a sobrevivência. Eles estão perdendo gradativamente sua capacidade de conseguir comida. Já fazem parte de uma subespécie, foram descartados pelo processo evolutivo, estão tornando-se estéreis, por isso não há motivo para continuarem vivendo.

Todos os seus antigos prazeres estão desaparecendo. Não pode mais ouvir os músicos nacionais, pois o Brasil já não tem músicos nacionais. Isto é, não há quem os veja, nas revistas ou na TV. Os artistas plásticos, que esbanjavam tintas, expõem suas telas em quatro cores, devidamente localizadas segundo ângulos exatos, marcados pelo jato do cartucho que vai e vem.

A festa das ruas, o molejo gratuito, a farra das cores, o riso largado, as pernas das moças só podem ser festejadas no circuito fechado e pago do sambódromo. O canto risonho, a fita no cabelo, a camisa florida, o abraço fortuito, o beijo roubado, a mochila nas costas custa dez dólares. A verdade contemporânea deve passar necessariamente pela voz dos locutores. Tudo que eles dizem, é charada morta.

O subespécie Leocádio não compreende esses seres exatos, que saíram da cartola da mágica do Big Brother. Não pode emitir opiniões originais, como era de seu gosto. Se quiser dizer alguma coisa, terá de botar no rodapé a referência ao autor - seja ele inglês ou americano. Não pode mais deixar a barba, para não ser julgado sumariamente pelos cães. Se quiser falar mal dos colonizadores, do banco, dos pastores, ou de qualquer desses milagreiros capazes de exorcizar a fome, as dívidas ou o Diabo, tem que ser em outra freguesia, para não perder a sua. Pois hoje, quem não tem o green card do Bem, é do Mal. Não se pode mais falar em Darwin, Dali e Chardin, em Hesse, Miller e Benjamin, pois todos os homens livres foram excluídos da conversação.

Leocádio é um dos últimos espécimes. Poderia ganhar dinheiro apresentando-se no circo como raridade em extinção, mas ele prefere ficar de fora, na esperança de que um dia o circo pegue fogo, a noite novamente escureça e ele possa finalmente rever as estrelas.

Leocádio não pode falar do amor, que virou moeda corrente nos comerciais de rádio e tevê e perdeu a substância. Também não pode sair às ruas mancando com sua artrose temporã, pois contemporaneamente todos andam reto e perfeitamente. Ninguém tem manchas nas calças, ninguém gagueja, ninguém tem caspa, ninguém manqueja, ninguém não fala inglês, mas Leocádio não fala. Sabia de antemão que uma língua era suficiente para expressar o continente das suas emoções, naquela época em que tudo tinha um significado, fosse o olhar da moça na mesa do bar, fosse a flor da roseira na mão do flautista. Agora os significados adquiriram preço na bolsa de valores. Conforme dançam os telefones no ouvido dos investidores, mudam as coisas de significado. Agora tudo ficou igual na cidade de Leocádio, basta dar uma olhada nos postos de gasolina e nas vendas de secos e molhados. Aliás, hoje não há vendas, só há supermolhados.

Talvez Leocádio devesse entrar no ritmo e transformar-se numa barata, uma transgênica, dessas que resistem a todos os inseticidas, não reclamam de nada e trocam de casca conforme a oportunidade. Mas ele não suportará não falar em amor, não agüentará não criticar os símbolos e os fundamentalismos. Tampouco deixará de pensar nas crianças como seres livres, brutalizadas pela cultura das baratas.

Este texto foi uma homenagem à subespécie dos homens livres, a turma do Leocádio.

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