O ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, em seu discurso quando da passagem do cargo a Dilma Rousseff, e também na tribuna da Câmara quando do seu "amargo regresso" ao parlamento, fez referências ao passado guerrilheiro de alguns membros do atual governo. Fez referência a Dilma Rousseff, e a si próprio, chamando-a de "camarada / companheira de armas". Mas teria sido mais justo e honesto se tivesse também citado seu companheiro (de partido, e não de governo) José Genoíno. A imprensa criticou a "infeliz declaração" do ministro demissionário (teriam visto como uma provocação, uma impertinência). Talvez tenha sido. Entretanto, essa mesma imprensa não deixou de fazer, em seguida, reiteradas matérias enfatizando essa passagem do currículo da ministra. Por que será que a mesma imprensa, que critica Dirceu por essa sua referência (descabida?) a esse episódio tão "particular" da nossa história recente, fez questão em seguida de ressaltar essa "particularidade" em Dilma? Por que essa mesma imprensa assim não o fez quando esta assumiu o ministério das Minas e Energias? Senso de oportunidade? Talvez. Mas esse é um outro debate, acessório. Essa é uma outra história. Creio que, com essa citação, Dirceu não pretendeu fazer qualquer ameaça "tresloucada" e "inconseqüente" à ordem estabelecida (como muitos chegaram a insinuar), e sim, acredito, desejava apenas sinalizar para a opinião pública que ali, naquele governo, estavam pessoas decentes e abnegadas, que há muito lutam o bom combate por um país melhor. Brasileiros que, em um certo período da nossa história recente, colocaram a sua integridade física, e até a própria vida, em risco, em prol da defesa da liberdade e da justiça social nesse país. Ou será que isso já não é meritório e digno de ser ressaltado ou lembrado? Brasileiros esses hoje tão raros e atípicos. Brasileiros esses que antigamente até eram chamados de patriotas, ou subversivos, de acordo com o viés ideológico. Isso bem antes, veja bem, de boa parte dessa elite que aí está e que agora se insurge contra o governo do "encanador", inclusive com a cumplicidade dessa mesma imprensa venal e manipuladora, destruir o ensino público no país (e a educação como um todo) e ter difundido de tal modo o individualismo arrivista e o "salve-se quem puder" que hoje parece ser de fato essa a "filosofia" que domina corações e mentes. E é desse arrivismo e individualismo deletérios que certamente advém essa corrupção, que há muito infesta e vem apoderando-se, cada dia mais, da máquina do Estado. Daí advém essa falta de solidariedade, essa (im)postura daqueles outros tantos brasileiros que parecem dar de ombros e dizer: "o Brasil que se dane, eu quero é me dar bem". A citação de Zé Dirceu fez, por tortos caminhos, lembrar-me dos meus "irmãos de armas". Aqueles meus companheiros de juventude que, cada um ao seu modo, também cultivaram o sonho e a esperança de mudar esse país. Eu vi, tomado de uma sensação de tamanha desolação e impotência, muitos desses meus "irmãos de armas" tombarem nessa longa jornada de lutas e batalhas pela construção de um Brasil melhor. Não unicamente ou exatamente, à época da ditadura, na guerrilha do Araguaia ou nas diversas guerrilhas urbanas que resistiram heroicamente ao terrorismo de Estado praticado pelos militares - num dado instante, é certo, o terror freqüentou ambos os lados dessa "guerra". Os meus "irmãos de armas" foram os filhos bastardos / malditos dessa mesma ditadura. Os brasileiros que viveram a sua infância e adolescência sob as botas de um regime de exceção. Os que não se conformavam com aquele estado de coisas que se impunha como realidade irrefutável, inquestionável. Aqueles que eram sufocados, alijados por aquela sociedade tão injusta e desigual. Aquela mesma sociedade que guardava, como ainda o faz hoje, as suas melhores escolas, os seus melhores empregos para os filhos de uma certa elite, para os "bem-nascidos". Eu vi muitos dos meus "companheiros de armas" (de outras armas, decerto, que não o fuzil, a pistola e a "metranca") tombarem nesse longo caminho. Alguns enlouqueceram, outros se suicidaram. Alguns morreram de overdose, outros vitimados pela AIDS, pelo alcoolismo ou pelas doenças que a miséria e a exclusão causam. Outros terminaram seus dias em alguma penitenciária. Outros simplesmente desistiram. Como sinto a falta desses meus irmãos de armas! E foram muitos, reitero, esses meus companheiros, esses meus "irmãos" que foram consumidos pelo fogo santo da revolta, da insânia, da paixão, da indignação, e até mesmo pelo mais absoluto abandono e descaso. Muitos foram os que tiveram suas vidas interditadas, seus sonhos negados. Os que encontraram a morte de maneira tão precoce quanto estúpida. Esses foram os meus "irmãos de armas". Companheiros e combatentes de uma batalha perdida, de uma geração perdida. Frágeis soldados de uma "revolução" silenciosa, solitária, ingênua, improvável - sem direito a recompensas ou medalhas. Esses foram os meus irmãos de armas. Para mim, valorosos, louváveis, meritórios como Genoíno, Dilma, Dirceu, Marighella, Lamarca, Iara e tantos outros brasileiros, muitos deles anônimos, que empenharam sua vida na luta por edificar um sonho de um Brasil melhor. Esse mesmo sonho de Brasil que hoje apodrece nas Febem da vida. Ou nos presídios abarrotados de não-cidadãos. O mesmo sonho de um Brasil melhor que parecia insinuar-se com a condução de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. O mesmo sonho que certos setores das elites desse país ainda teimam em querer interditar.
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