Ler é viver, porque quando lemos acessamos vários tipos de conhecimentos e operações mentais, se realmente somos leitores competentes, para compreender um texto jornalístico, literário, instrumental, humorístico, científico etc. Primeiro é preciso o reconhecimento de palavras escritas e idéias (hipóteses) e sua conexão local e global para reconstruir a base textual. Por que não compreendemos um texto ou pensamos compreendê-lo, e somos criticados pela nossa interpretação? É preciso ter em mente que a compreensão profunda de um discurso "transcende" o próprio texto e o leitor precisa formar uma imagem mental do modelo de mundo que o narrador (repórter, articulista, cronista, cientista, historiador etc.) descreve, a partir de inferências e procurar compreender de que maneira aquele texto pode suprir suas preocupações, mesmo aquelas que ele mesmo nem se dê conta. Nesse sentido, é importante considerar o que diz um autor famoso, Karel Kosik, em sua obra Dialética do concreto: "A preocupação é o mundo no sujeito. O indivíduo não é apenas aquilo que ele próprio crê nem o que o mundo crê; é também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel objetivo, supra-individual, do qual não se dá conta necessariamente." Por isso, precisamos estar sempre pesquisando, porque as informações nos atropelam. Os conhecimentos que temos sempre nos parecem insuficientes diante da pluralidade de opiniões e fatos que vivenciamos. Negá-la? Certamente, isso é impossível. O leitor ideal esforça-se para atingir a compreensão leitora necessária para desvelar quaisquer textos. Como vemos nosso leitor ideal? O leitor ideal que todos escritores gostariam de ter é obviamente competente. É capaz de atualizar vários tipos de conhecimentos de diferentes categorias e realiza operações que lhe permitem processar as informações do escrito (enunciado) para instaurar um sentido coerente com a representação mental invocada pelo texto. Diz Wittgenstein, filósofo (nascido em 1889, Viena) que o limite de nosso mundo é o de nossa linguagem. Por exemplo, se você lê versos como esse: lá? / ah! / sabiá / papá / maná / sofá / sinhá / cá? / bah (de José Paulo Paes), que sentidos podem ser atribuídos a eles? De início, parecem confusos, não é? Mas, se você prestar bem atenção e conhecer a Canção do exílio (Gonçalves Dias), verificará que se trata de uma paródia. Lá, sabiá, maná referem-se ao ideal romântico do poeta (Minha terra tem palmeiras / Onde canta o Sabiá / As aves, que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá). Minha Dinda tem cascatas / onde canta o curió (Jô Soares). Em José P. Paes, o sintetismo: Cá (Brasil atual), sinhá, sofá, bah! (a desilusão). Em Jô, os elementos estão explícitos. Mas, caro leitor, você pode não concordar com nossa interpretação, o importante é perceber que há textos que dialogam com outros (intertextualidade). Logo, o leitor competente sabe que deve controlar sua compreensão e regular seu modo de ler de acordo com o objetivo que estabelece para a leitura relacionando-a com o contexto em que ela ocorre e com o gênero discursivo a que pertence. Mas isso ainda não basta. Do outro lado, é preciso, por parte do escritor, que reflita sobre a adequação dos enunciados e verifique se estão satisfatórios à compreensão leitora do público-alvo, em função da relação que estabelecem com as possibilidades de desenvolvimento de possíveis sentidos. Isso envolve a questão de conhecimentos prévios. De fato, se você já conhece tudo o que estamos relatando, ou se aborrece mortalmente lendo esse texto e mesmo assim continua a leitura, há duas hipóteses: ou você tem um grande espírito de sacrifício ou quer saber se ainda vamos lhe contar algo que realmente valha a pena. Bem, isso é um risco que corremos quase diariamente, quando o assunto de um texto já nos é conhecido por outros suportes e/ou canais. E o que é o mais chato nisso tudo? Como escritores, pensamos que quando um assunto já é conhecido, o leitor não tem que fazer nenhum esforço para compreendê-lo. Se o texto estiver bem escrito e esteticamente apresentado, com interessantes ilustrações, o leitor poderá fazer um esforço a mais e continuar a leitura para compreender a finalidade de o narrador ter empregado seu tempo em escrever o que o suposto público-alvo já sabe e está cansado de ler sobre o mesmo tema. Se isso não acontecer, e o leitor se aborrecer a ponto de abandonar a leitura, e considerando sempre o caso de um texto estar bem redigido, resta-nos indagar: o que sucedeu? Por que sucedeu? Segundo teorias e pesquisas atuais, pode ser que o leitor não tivesse conhecimentos prévios exigidos para abordar o texto de maneira diversa ou com maior profundidade. Isto é o que acontece conosco, que não temos conhecimentos e nem experiência em redações de jornal, por exemplo, e temos que escrever um texto jornalístico. Tomamos coragem porque, muitas vezes, ficamos perplexos de ver com que "falta de pudor e ética" determinado autor "esquenta" as mesmas informações que já foram veiculadas por outros meios. Neste caso, temos garras de não somente abandonar a matéria e jogá-la pela janela, como também de consultarmos um advogado, afinal pagamos pelo jornal (ou revista), não é? Afinal, citação é uma coisa, já o plágio... Outra hipótese. Fomos precipitados ao abandonar a leitura, rasgar o texto e xingar o autor. Por não possuirmos conhecimentos prévios necessários sobre o contexto, a falha foi nossa porque, por exemplo, não lemos as entrelinhas e não soubemos entender as pistas deixadas pelo narrador (escritor) que poderiam nos oferecer novas informações. É possível que nosso conhecimento sobre o assunto sejam insuficientes e não temos base para ancorar novas informações, como vimos nas paródias citadas. Nada requentado parece causar impacto, no máximo pode passar estranheza, se o narrador é um autor conhecido e célebre. Por outro lado, há a hipótese que o nosso querido leitor ideal já tenha preconceito sobre o nosso trabalho e esteja predeterminado a ler nosso texto, não como um crítico exemplar, mas como um carrasco que satisfaz seu instinto em nos liquidar. Pode ser que ele, na melhor das hipóteses, também tenha lido nossos escritos e não tenha elucidado as idéias principais dos textos. Assim, morreríamos mais felizes, pelo menos fomos lidos antes de dar o último suspiro. * * * Devemos nos colocar como nosso primeiro "carrasco", se ocuparmos a posição de receptor, afinal somos ou não nosso primeiro leitor ideal? Se você, caro leitor, já passou por isso e continua vivo, parabéns. Afinal, ler é viver e vale os primeiros e os últimos suspiros de nossos leitores. Ou não? Nota do Editor: Iracema Torquato e Solange Maria Cardoso são professoras. Responsáveis, na Diretoria de Ensino de Jaú, pelo projeto Ler e Viver da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo.
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