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SEÇÃO
Crônicas
26/07/2018 - 05h42
Conto russo
Henrique Fendrich
 

No tempo de Dom Canuto I, o poeta, vivia em casa deste um rapaz, não mais do que isso, dos mais inseguros. Era daqueles que chamam a atenção pela tentativa de ser discreto. Tão ostensivamente ele tentava não aparecer que quase sempre acabava descoberto, ocasiões em que era forçado a falar e a interagir, como se pessoa normal fosse. Não era uma pessoa normal, não naquele ambiente, não ao lado de pessoas com quem não tinha nenhum vínculo de parentesco. Seu vínculo com Dom Canuto era de ordem meramente literária, insuficiente, portanto, para as boas conveniências da vida em sociedade.

Todos se esforçavam para que se sentisse bem, mas ele se sentia mal ao saber que era necessário que as pessoas se esforçassem para que se sentisse bem. E então, na primeira oportunidade que aparecesse, ele fugia de casa, arrumava pretextos para sair, dizia que ia à igreja, ainda que fossem duas da tarde, e todos se admiravam da vida pia e santa que ele levava. Mas era apenas para respirar que ele saia, para ficar só e não ter mais que se preocupar com o que é correto fazer. Voltava de noite, já tinha um pouco mais de ânimo, às vezes chegava até a arriscar uma frase.

Mas ainda eram muitas as horas vagas, aquelas que passava deitado lendo um livro, “Maravilhas do Conto Russo”, se é que há algum que não o seja. A vida era aquilo, uma página de literatura russa. Mas não conseguia se concentrar por muito tempo na leitura, levantava, ia até a estante, ficava olhando as lombadas dos livros que não eram dele, às vezes tirava um, folheava, colocava de volta. O tempo não passava, ele queria que chegasse a hora de dormir, a hora de dormir era a hora de relaxar e de esquecer.

Ao seu lado, Dom Canuto poetava, como era de hábito. Tirava acordes no violão, queria aprender uma música do Chico Buarque, o “Fado Tropical”, aquela com um discurso no meio, “sabe, no fundo eu sou um sentimental...”. E Dom Canuto cantava e discursava na hora que tinha que discursar, e fazia com tanta desenvoltura que era de fazer inveja ao rapaz ali do lado, o que não tinha sangue lusitano, o da alma russa. Dom Canuto era um pouco de como ele seria, um dia, ou de como ele poderia ter sido.

O poeta tinha amigos e às vezes, quando não tinha ninguém em casa, ele pedia licença e ia com os outros até os fundos da casa, onde eles se dedicavam a algumas experiências sensoriais significativas com aquela planta que passarinho não fuma. Isso ele teve que adivinhar, ninguém nunca contou ou convidou. Por que é que Dom Canuto não falou nada? Talvez não quisesse ser ele a apresentar esse mundo, talvez visse que se tratava de uma criança assustada. Então o rapaz ficava lá dentro, mexendo no computador, e a casa toda fechada, enquanto lá nos fundos todos riam, riam de um jeito que ele não costumava rir, se bem que ele não costumava rir de nenhum jeito.

Levantava cedo, antes de todo mundo, tinha que viajar até o centro, duas horas de ônibus dentro da mesma cidade. Tomava café sozinho, comia um pouco de cuscuz, tentava descobrir qual era a graça daquele tal de cuscuz, mas nunca soube exatamente. Tinha sempre roupa limpa, pois emprestava a mãe de Dom Canuto, mas apenas para fins de lavagem de roupa e cozimento de almoço. Foram dois meses nessa rotina, que não podia durar para sempre, nem mesmo na mais caridosa das sociedades. Então um dia ele se deu conta de que precisava sair da casa de Dom Canuto, e saiu realmente, embora ainda não tivesse muita ideia de onde ficaria a partir de então.

Era fim de tarde. Dom Canuto o acompanhou até o ponto de ônibus, ele e uma mala velha, onde se concentrava toda a sua vida. No caminho, se lembrou de ter esquecido de botar o livro na mala. Conto russo, a partir de então, só os da vida real.

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