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SEÇÃO
Crônicas
12/09/2018 - 05h56
Somos todos carentes
Henrique Fendrich
 

Houve um tempo em que era possível vê-lo na reitoria da UFPR. Era universitário, certamente um dos mais velhos universitários que lá estudavam. Eu não o conhecia, foi apenas por acaso que nós fomos apresentados. Estava acompanhando um amigo que estudava lá e de repente ele apareceu para conversar. Meu amigo não deu muita atenção a ele, coisa que só fui entender mais tarde. Aquele senhorzinho, de mais de 60 anos, era o que se chama de chato. Mas eu ainda não sabia disso e dei ouvidos ao que ele me dizia. Falava com o entusiasmo daqueles que apenas raramente encontram quem os ouça. Como todos os chatos, esse também não deixava muita brecha para as minhas respostas. Depois de alguns minutos, eu comecei a responder apenas com monossílabos, mas ele estava muito longe de ver nisso algum sinal de desagrado da minha parte. Meu amigo precisou me arrastar dali, mas eu ainda o veria outras vezes, e ele se lembrava sempre de quem parava para ouvi-lo.

O assunto preferido daquele senhor eram seus projetos pessoais. Gostava de escrever, e quando lhe disse que eu também fazia das minhas, se animou a valer. Contou que tinha dois livros quase prontos, e não hesitava em chamá-los de ótimos. O primeiro era uma espécie de tratado político-filosófico, cujo tema eu, para ser sincero, não consegui captar. Perguntou-me quem eu gostava de ler. De improviso, eu me lembrei do velho Machado. “Pois então você vai gostar bastante do meu livro”, rebateu. Antes que eu perguntasse o motivo, ele foi logo se estendendo a respeito da sua obra, a qual, por mais que falasse, em nada me lembrava o Bruxo do Cosme Velho.

Quanto ao segundo livro, ele não podia me falar do que se tratava. “É segredo. Não quero que a ideia vaze. Mas posso garantir que é algo totalmente original”. E devia ser mesmo, já que ele afirmou que essa publicação ainda o deixaria rico. Fiquei até com vergonha das coisas que eu escrevi, que nada têm de original, e muito menos me garantirão prosperidade. Embora nenhum livro ainda estivesse publicado, ele dizia que já havia um terceiro em construção, e que este seria absolutamente diferente de tudo já feito.

Contou ainda que havia enviado dois artigos interessantíssimos para uma revista científica. “Eles gostaram muito. Os caras já me conhecem lá, estou sempre enviando artigos. Com certeza vão publicar”. As conversas, em todas as vezes que conversei com ele, variavam sobre esses assuntos. Os seus livros não eram nunca publicados e nem os seus artigos eram aceitos, já que sempre voltávamos a falar deles, mas eu nunca ouvi dele uma palavra de desânimo. Pelo contrário, ele mantinha a determinação, e fazia crer que se tratava realmente de um verdadeiro gênio.

Embora isso de início pudesse me aborrecer, eu me tornei mais tolerante em relação a ele. Claro, ele certamente exagerava ao falar de si e se engrandecia mais do que seria conveniente, mas, que diabos, somos todos carentes. Eu também quero leitores, eu também quero que publiquem tudo o que escrevo, que achem incrível e me paguem uma fortuna. Ele ainda parece ter a superioridade de não se importar com as negativas, ao passo que eu sou capaz de me ofender. É um pobre homem, como eu e o mundo.

Fiquei muito tempo sem me encontrar com ele, até que ontem eu o avistei na Biblioteca Pública. Perguntei-lhe dos livros e dos artigos, e admirei-me com o pouco caso que fez deles. Parecia que não se importava mais. É que ele já tinha um novo assunto: concursos públicos. Havia um especial que pagaria R$ 17 mil. Ele estava estudando e disse que estava em vantagem, pois tinha alguns conhecimentos que os outros não tinham. “É praticamente certo que eu vou passar”, afirmou. Ele havia mudado de sonhos. Agora os seus sonhos pertencem ao Estado.

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