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Crônicas
23/10/2018 - 07h34
Todos os livros da face da Terra
Henrique Fendrich
 

Tenho um amigo que gosta muito de ler, mais do que eu mesmo. Mas eu não tinha ideia ainda do quanto a leitura tomava conta da sua vida até o dia em que dei de presente a ele um livro de contos do Kafka. Ele agradeceu e disse que leria dali a 12 anos. Senti-me ofendido com semelhante descaso, mas ele tratou de explicar que a razão de assim proceder era o seu sistema de leituras. A cada ano ele escolhia um tema para ler. Por exemplo, “prosadores ingleses”. E então tudo o que lia durante o ano eram prosadores ingleses. Era muito disciplinado e nada havia que o desviasse, nem mesmo presentes. Só dali a 12 anos haveria uma categoria para abrigar o Kafka, isto é, a dos escritores que escreviam em alemão e não eram nascidos na Alemanha. Disse que agia assim para se obrigar a ler coisas que não leria naturalmente. Isso me pareceu, honestamente, um tanto doentio, mas continuei conversando com ele para ter uma melhor ideia dos efeitos nocivos da leitura desenfreada.

Estava lendo dois livros, um de um escritor da Lituânia e outro de um escritor da Estônia. “Este é o ano dos escritores do leste europeu menos a Rússia”, explicou-me. Citou uma série de escritores e quis saber se eu já ouvido falar deles, mas quem é que já ouviu falar de escritores da Lituânia ou da Estônia? Nem mesmo as editoras brasileiras, que só se lançam a algum escritor desses países quando ele é agraciado com o Nobel de Literatura. Não faz muito tempo, tivemos uma Nobel da Bielorússia. O meu amigo foi, seguramente, o único no Brasil que já a conhecia antes do prêmio. “Li no ano dos textos sobre o Afeganistão”, justificou-se. É evidente que as leituras não eram em português. Desde cedo ele percebeu que precisava ler bem mais coisas do que o mercado editorial brasileiro publicava e por isso se dedicou a aprender novos idiomas. Hoje domina os principais da Europa e se vira com outros, até mesmo o árabe. É uma espécie de Guimarães Rosa nesse campo.

Os seus “anos de leitura” já estão programados até 2043, mas ele me explicou que ainda podem ser feitas alterações. E exemplificou: “Há alguns dias eu fiquei interessado em alguns escritores do Panamá, só que o ano de leitura de escritores da América Central Ístmica seria apenas 2039. Então eu dei um jeitinho e passei para 2027”. Não foi uma concessão das mais fáceis, mas agora ele irá esperar só mais nove anos para ler os autores que lhe interessaram.

Perguntei se ele tinha certeza de que iria estar vivo até lá e ele deu um suspiro. Sabe que vai ser interrompido antes do fim, que, por mais que viva, não conseguirá cumprir todas as metas de leitura. Isso já lhe custou muitas noites de sono. De início, tentou se consolar com a ideia de que talvez exista reencarnação, mas depois isso lhe pareceu até mais odioso, já que, se não lhe restar lembrança das vidas passadas, ele será obrigado a ler tudo novamente.

Se pudesse escolher, já que é preciso morrer, ele preferiria que não fosse no meio do seu ano de leitura. Pela sua vontade, morreria na última semana de dezembro, que é quando ele dá por concluído o ano de leitura e se concede uma semana de férias, isto é, uma semana em que pode ler tudo o que quiser, sem ter preocupações temáticas. Às vezes, entretanto, ele abre mão dessas férias e já começa o próximo ano nos últimos dias do anterior.

Mas ele ainda quer viver muito. Não se interessa por amor, poder ou luxo: apenas quer ler. Consola-se sabendo que, a cada dia, a sua ignorância a respeito do que já foi publicado na face da Terra diminui. Além da morte, há outro medo que o preocupa terrivelmente: o de que se descubra a vida inteligente em outro planeta e que - meu Deus! - eles também tenham Literatura. Ele não dará conta de encaixar mais esses livros e o seu sistema ruirá!

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