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SEÇÃO
Crônicas
02/11/2018 - 07h36
Pensamentos que doem
Rangel Alves da Costa
 

Demais conhecida é a sentença de Descartes: Penso, logo existo. Com efeito, o filósofo francês Renê Descartes procurou sintetizar o alcance do verdadeiro conhecimento. Tudo existe e na forma que o pensamento assim desejar.

Segundo o filósofo, é o pensamento que forma a consciência, que idealiza a existência das coisas. Não perante aquilo visível e palpável, mas diante daquele que surge à mente para tomar forma segundo a noção concebida pela pessoa.

Contudo, inverto tal síntese filosófica para colocá-la perante situações reais, que não podem somente ser imaginadas por que realistas demais ao pensamento. Nada que seja presumido ou idealizado, mas simplesmente sentido nos seus efeitos, como verdade que não se pode negar.

Então, diria: Penso, logo entristeço. Não só entristeço como sofro, lamento, agonizo. Não só me consterno como me aflijo, padeço, pranteio. E não poderia ser diferente: no mundo atual, parece não haver lugar para alegrias e felicidades. Há um manto de tristeza revestindo cada acontecimento.

Por isso, penso e logo entristeço. Não há com deixar de entristecer diante de tanta violência, tamanha atrocidade, tanto sangue inocente jorrando, tanta vítima da desumanidade e da brutalidade. Aqui e ali, por todo lugar, e a mesma notícia ruim que chega em ventania, que se amontoa nos canteiros putrefatos do mundo.

Penso, logo entristeço. Por mais que haja esforço, encorajamento, busca de encontrar bons motivos e esperanças, ainda assim persistem as dores e os sofrimentos. E nada de imaginação, mas de pura realidade: mais um ataque terrorista, mais uma cabeça decepada, mais ódio jurando de morte a todos.

Penso, logo entristeço. Penso que a vida poderia ser bem melhor, mais humana, mais agradável e convidativa a se viver. Mas o chefe não deixa, o patrão não deixa, o vizinho não deixa, o estranho não deixa, o político não deixa, o governante não deixa. Parece mesmo uma aptidão única para tornar a existência mais dificultosa e padecente.

Penso, logo entristeço. Tantas vezes até me belisco para saber se enfrento a realidade ou permaneço em sonho ruim. Dou-me conta da realidade e entristeço mais ainda. E não há como não entristecer diante do preço do feijão, do remédio, da vestimenta, de tudo que a pessoa precise para sobreviver com a mínima dignidade.

Penso, logo entristeço. Entristecido, baixo a cabeça para esconder a face estarrecida, porém não há quem consiga fugir do mundo real. Tão realista quanto feroz, voraz, faminto. Um mundo que desnorteia infâncias e juventudes, que sucumbe as morais humanas, que faz surge tantas aberrações e atrocidades. Ou não será o mundo, mas apenas o homem?

Penso, logo entristeço. Somente os insensíveis ou responsáveis pelas tristezas dos outros para não entristecerem perante os fatos novos, ou já envelhecidos debaixo de tapetes ou atrás de cortinas. E não há lugar para pensar, senão apenas confirmar, os nomes envolvidos em corrupção, em desvios de verbas públicas, em enriquecimentos ilícitos, em todos os tipos de falcatruas contra as verbas públicas.

Penso, logo entristeço. Gostaria de estar sorrindo pelas calçadas, nos bancos das praças, pelos caminhos e mais além. Mas como sorrir se roubaram os sorrisos, se furtaram as felicidades, se levaram a paz à mão armada? Como mostrar uma cara alegre se o olhar defronta a aberração, se o coração amarga a dor das crueldades em cada canto e cada esquina?

Penso, logo entristeço. E creio não haver mais lugar onde pessoas não estejam entristecidas. Em toda palavra o descontentamento com os salários atrasando cada vez mais. Em toda voz a angústia com o preço alto demais da sobrevivência. Em todo sussurro a aflição pela desesperança por dias melhores, vez que os abismos se aproximam cada vez mais e absolutamente nada permite pensar num amanhã que seja enfim prazeroso.

Penso, logo entristeço. Ligar o rádio, a televisão, o computador, o smartphone, ouvir o outro, ler o jornal? Qual o prazer na música de sucesso atual, qual o contentamento ante o noticiário na televisão, no computador, no jornal? Melhor o entristecimento pelo já conhecido a se entristecer mais ainda com a novidade que chega. Dor sobre dor, melhor o entorpecimento de vez.

Penso, logo entristeço. As pessoas não sabem mais o que querem, não conseguem mais ser coerentes consigo mesmas. Passam a rejeitar o que conseguem pelo simples desejo de a tudo negar. Luta-se pela saída de uma governante e passa a bradar pela saída do outro. E assim será com todo aquele que chegue ao poder. Quer dizer, nada possui serventia.

Penso, e se mais uma vez entristeço, então penso logo em desistir. Não. Não desisto. O ser humano deve carregar consigo o compromisso das transformações. Ainda que agindo sozinho, carregando pedras sobre espinhos, jamais poderá desistir de seus sonhos.

E penso que perante a situação, sobreviver para sonhar com um amanhã melhor já será de grande valia. Pois também penso que um dia voltarei a sorrir.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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