Foi o teste mais fácil da minha vida. Primeiro preenchemos uma porção de quadradinhos. Depois pediram para desenhar uma árvore. Delícia! Desenho há mais de vinte anos. Para não ter dúvidas, dei toques de artesão à obra. Não somente fiz uma árvore com galhos bem definidos, segundo longas e atentas observações dessas criaturas verdes, com sombras em gradações finas para dar um toque de realidade ao objeto, como também mostrei ciência ecológica ao colocar a árvore deitada, recém-caída, ao lado do toco, sobre o qual introduzi um machado cuja lâmina relampeava ao sol. Folhas espalhavam-se pelo chão. Um pássaro triste balançava num galho. Olhando os candidatos ao lado compreendi, pelo jeitão de apanharem o lápis, que tentavam realizar a primeira obra de arte de suas vidas. Tive a certeza de estar aprovado. Em seguida, como parte integrante do teste, pediram que contássemos em prosa uma história triste. Arranquei do fundo da memória o momento mais dramático da minha vida, e colori com matizes fortes. Ao analisar o texto, o psicólogo não teria dúvidas de que eu era capaz de perceber o sofrimento humano e que, portanto, dentro do trânsito, jamais colocaria em risco a vida de outro vivente. Semanas adiante liguei para o Departamento de Trânsito. Informaram que eu estava reprovado. No balcão do Departamento disseram que eu só poderia fazer novo teste dali seis meses. - Que história é essa? - perguntei. - Faz favor, me chame o psicólogo que fez o teste. - É psicóloga. - Faz favor, me chame essa psicóloga, que preciso bater um papo com ela. - Não pode, senhor. Só daqui a seis meses. - Senhor? Você disse ’senhor’? Eu só tenho vinte e três anos! Ela tá aí dentro? - Sim senhor. - Dá licença? Fui entrando, surdo aos protestos que me seguiam. Em sua sala, debruçada sobre a mesa, livro nas mãos, uma mulher pálida, olhos sombreados, olhava-me boquiaberta. - Boa tarde - falei. - Pois não? - Reprovei no psicotécnico e preciso que você me diga por que. - Ah, é você. O Roberto, não é? Pois é, Roberto, teve um probleminha no seu teste. - Probleminha? O quê? Esqueci de assinar? - É que o teu desenho... bom... pelo que a gente conhece, quero dizer... - Sou desenhista profissional, moça. Desenhei exatamente o que quis. - Sei, sei. Olha, por favor, sente aqui. Vamos conversar. - Não tem nada que conversar. Reprovei no teste. Quero saber por que, só isso. - Pois é, mas é por isso mesmo... sente-se, por favor. Ela era mais delicada do que eu. Estava fazendo um esforço tremendo para não descobrir que escolhera a profissão errada. Comecei a me sentir estúpido e mal-educado. - Então, Roberto, me diga, você trabalha com quê? - Sou desenhista, já falei. - É escritor também? - Não. Só escrevo quando é preciso. - Histórias tristes? - Só quando me pedem. Como no teste de vocês, por exemplo. - Aquilo realmente aconteceu? - Lógico. Vocês pediram pra escrever sobre uma situação vivida. - Você sofreu muito? - Sofri. Mas o que isso tem a ver com a carteira de motorista? É disso que eu quero saber. - Qualquer um ficaria perturbado se vivesse uma situação daquelas. - Não sou perturbado coisa nenhuma. - Não estou dizendo que você é. Mas aquilo ficou na tua cabeça... tanto que você lembrou na hora do teste. - Mas lógico que ficou na minha cabeça. O que você queria? Que eu esquecesse? Uma coisa dessas a gente nunca esquece. E quer saber? Não quero esquecer. Faz parte da minha vida, compreende? - Nunca mais viu a moça? - O que isso tem a ver com a carteira de motorista? - Faz muito tempo? - Escute. Eu só preciso que você me assine um papel dizendo que posso sair por aí dirigindo um automóvel. Já faz anos que dirijo. Olhe pra mim. Eu não sou louco, dona. Não sou cego, nem surdo. Quero dizer, eu funciono pra esse tipo de coisa. - Ninguém disse que você é louco. Nenhum psicólogo pode afirmar uma coisa dessas. Mas o teu desenho, por exemplo, ele também mostra uma certa perturbação. - Desenho faz mais de vinte anos. Desenhei o que quis naquele teste. Eu quis fazer aquela árvore caída, compreende? Foi uma opção. Podia ter feito de pé, mas por acaso, naquele dia, resolvi fazer uma árvore caída, percebe? - O fato é que você realmente fez a árvore caída. - Ah, mas assim não dá. Você quer que eu seja perturbado de qualquer jeito, não é? Eu vi o que os outros estavam fazendo. Se quer saber, só tinha um desenho naquela sala. Os outros... - Normais. - Um monte de garranchos. - Você não pode falar isso. - Não estou criticando ninguém. Mas conheço desenho e sei o que estou falando. Um monte de garranchos, sim senhora. - Não vamos chegar a um acordo desse jeito. - Concordo. Você está certa. Não chegamos a lugar nenhum. - Quer dizer, não adianta a gente ficar falando do desenho. - Você desenha? - Não. - Então está certo. Não adianta falar sobre isso. Você analisou o meu desenho e nem sabe desenhar. Como é que pode? - Já falei que não quero mais discutir isso. Eu quero saber como anda a sua vida... - Ora, como ela anda... ela anda... - ... o que você tem feito... - Nada de mais. Tenho andado por aí. - Como assim? - Eu ando pela cidade. Gosto de ver as coisas, as pessoas. - Isso não é muito comum, é? - Não sei. Vejo muita gente andando pela cidade. - Mas não que elas saiam de casa só para andar, para ver a cidade, como você... - Cada um tem seus motivos. - Mas é preciso ter um motivo, antes de tudo. - Se você quiser ter um motivo, tudo bem. Caso contrário, o problema continua sendo apenas seu. - Você sempre sai sozinho? - Quase sempre. - O que você faz nos finais de semana? Nesse momento olhei com mais atenção. As olheiras. Uma nuvem dentro dos olhos. Por cima de seus ombros, através da janela, árvores verdes, céu azul, pássaros livres... completa ausência de mofo. - Tudo bem, moça, então um dia desses você me liga e a gente conversa, tá certo? Quem sabe a gente sai junto num final de semana, depois continua essa conversa. Pegamos um cinema, tomamos um chope. Agora, faz favor, vamos parar com isso. Me assine o papel. - Não posso. Você precisa me dizer mais algumas coisas. - Tenho mais o que fazer. Dá licença. Levantei e segui na direção da porta. Foi um caminho demorado. Meus passos lentos aguardavam que ela falasse. Já apertava o trinco. - Espere! - Hein? - No próximo final de semana está bom para você?
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