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SEÇÃO
Crônicas
12/11/2018 - 07h25
Mozart assassinado
Henrique Fendrich
 

Ele era o mais brilhante da nossa sala. Desde o primeiro ano da faculdade havíamos percebido que se tratava de uma mente acima da média. Fazíamos certas brincadeiras com ele a esse respeito, mas nós o admirávamos, tanto mais que ele nunca parecia se vangloriar das suas habilidades. Como era natural, muitas vezes recorríamos a ele para os trabalhos que precisávamos fazer e ele sempre se mostrou disposto a nos ajudar. Francamente, creio até que, de vez em quando, abusássemos da sua inteligência, mas nunca houve uma demonstração de desagrado da sua parte.

Uma coisa que dizíamos frequentemente era que um dia contaríamos com orgulho que havíamos estudado com ele, pois estávamos certos de que a fama viria encontrá-lo mais cedo ou mais tarde. Os próprios professores compartilhavam dessa opinião, e frequentemente o distinguiam pelos seus feitos, o que, visivelmente, o deixava muito envergonhado. A defesa de sua tese foi um momento muito singular, pois a banca avaliadora, não vendo a necessidade de se estender sobre um trabalho que julgava perfeito, usou o seu tempo para fazer conjecturas a respeito do futuro que melhor caberia a aluno tão distinto.

Formamo-nos todos, inclusive os alunos que, como eu, não eram tão brilhantes assim, vários anos se passaram e eu perdi o contato do nosso pequeno gênio. Via alguma coisa ou outra que ele postava nas redes sociais, mas ainda não tinha ideia de como ele estava levando a vida. Mas então eu encontrei com ele na rua na última semana e pude perguntar, com grande curiosidade, qual dos brilhantes caminhos que fatalmente o aguardava ele tomou. A verdade, no entanto, era muito diferente da que eu imaginei.

Ele disse que era operador de telemarketing. Não tenho nada contra operador de telemarketing, mesmo os mais insistentes, mas, caramba, ele era o cérebro daquela turma, como é que, agora, tinha um emprego que lhe pagava menos do que o meu? Não escondi o meu espanto, deixei-o até sem jeito, e ele meio que gaguejou que tinha que pegar aquilo que aparecia pela frente. Disse que estava até melhor do que quando trabalhou em mercado, logo depois da sua formatura. Perguntei se nunca havia trabalhado na área e ele disse que teve “uns frilas” por aí, nada definitivo, nada que lhe desse alguma segurança.

Intrigado, continuei a conversa para entender onde é que as coisas haviam dado errado. Ele falava pouco e muita coisa eu tive que deduzir, mas creio ter me aproximado da verdade. Todos os gênios em alguma área carregam consigo enormes ignorâncias em outras. É uma compensação da natureza. Nosso gênio era especialmente fraco em habilidades sociais. Tímido até as raias da fobia, não tinha aquilo que os entendidos chamam de “network”. Até tentou uma indicação com os poucos que poderiam lhe ajudar, mas nada foi para frente. Sem muita iniciativa, ele deixou passar algumas oportunidades. Foi atrás de outras, mas sempre quebrou a cara - até parecia que uma grande nuvem de azar estava sob a sua cabeça. Ainda assim, se fosse cara de pau, penso que estaria hoje em uma posição de destaque. Com o tempo ele foi desacreditando de tudo e desistindo do futuro - até porque, as contas não paravam de chegar.

Quando falei que ele era um incrível talento desperdiçado, ele me olhou com a cara de quem já havia ouvido muito essas palavras e que elas já não o impressionavam nada. Prometi a ele mover mundos e fundos, falar com pessoas que talvez pudessem lhe ajudar, mas ele tampouco se entusiasmou. Já tinha ouvido muitas promessas que nunca se realizaram.

Pensei no “Mozart assassinado” de que fala o Saint-Exupéry. Meu colega era um pouco isso. Era uma rosa que teria um grande futuro, se cultivada e protegida - se houvesse um jardineiro de homens.

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