Fui um adolescente muito curioso, gostava de ouvir as pessoas mais velhas, adorava. Não que não me divertisse a valer com meus amigos de geração, mas adorava ouvir histórias e reflexões dos mais velhos, principalmente de pessoas verdadeiras, francas, aquelas que não usavam freio nas ventas e nem barbicacho, pessoas que não tinham medo de dizer a verdade, mas para isso não precisavam arrotar valentia e nem fazer pose de valente. Havia um sapateiro que eu adorava ouvir as suas histórias. Eu sabia de fonte segura que esse velho tinha participado do cangaço, fora cabra de Lampião ou de outros grupos, que fora muito valente, mas que deixara o bando antes do final do cangaço, não por medo, mas por amor. Deixou o cangaço por uma mulher. Ele nunca falou no assunto e nem admitia que se falasse nisso na sua presença. Mas falava das brigas, política, causos e coisas do sertão, viveu em várias cidades. Sempre que contava as coisas do sertão ele me fitava nos olhos e me dizia: - A coisa mais triste do mundo, mais horrível, menino, é a fome. Só quem presenciou e viveu pode avaliar como é medonha. A fome é pior que o inferno. Era uma verdade. Uma verdade abissal. Pude pessoalmente ser testemunha da fome e constar como ela é triste e medonha. É que assisti a algumas invasões da cidade por flagelados, e aí vi a face horrível da fome. Esfomeados, pálidos, esqueléticos e desesperados ali estavam homens, mulheres e crianças. Mas o que mais me impressionou foi o olhar dos esfomeados. Era como se estivessem mortos, o olhar dos mortos. Juro. Saramago disse que imoral era a fome. É verdade, é imoral e uma vergonha para todos. A fome desmoraliza toda a sociedade, porque ela é responsável pela fome dos miseráveis. Depois que vi essa invasão fui à tenda do sapateiro, ele parou de bater na sola e me disse: - Não preciso nem perguntar, você viu os olhos dos flagelados e ficou chocado. Aquele olhar, menino, vai ficar gravado na tua mente por toda a vida. Ficou. Sofro muito com as dores do mundo, com as dores dos pobres. Sinto ainda mais nada poder fazer de concreto pelos mais pobres. Sou apenas um velho doente e sem nenhum tipo de poder um influência, sofro com essa impotência. E sofro ainda mais porque sei que a pobreza vai aumentar. Não preciso desenhar. Nunca esqueço uma frase de Malraux: "Há mais dores no mundo que estrelas no céu". Inté.
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