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SEÇÃO
Crônicas
02/05/2019 - 07h13
O valor do borracheiro
Damião Ramos Cavalcanti
 

Quarta-feira passada, avisaram-me que era o meu aniversário. Pela septuagésima segunda vez, foi comemorado esse dia, já que, quando nasci, não se festejavam os meses iniciais da vida, só quando se completasse um ano inteiro. Lembrado, esforcei-me em recordar os aniversários mais felizes da infância, dos quais um foi uma viagem à Itabaiana para consertar o pneu da motocicleta do meu pai, circunstância em que cresceu em mim a importância da profissão de borracheiro. Explica-se isso pelo fenômeno de que as crianças de hoje não nascem, nem crescem, tampouco se educam como as crianças de antigamente. Tudo, agora, é rapidamente diferente...

Aos meus seis anos, havia na minha pequena casa, no meio da sala, uma motocicleta estrangeira que me impressionava e dava-me o orgulho de tal transporte daquele tipo, único na cidade, pertencer ao meu pai. Tal motocicleta viveu, por muitos meses, com pneu furado. De início, atrapalhava minhas brincadeiras, mas ao passar do tempo, tornou-se objeto das minhas imaginações: viajava nela, às vezes, em alta velocidade, sem que ela saísse do canto. Brincava em torno dela, parada, empoeirada, silenciosa; seu barulho saía da minha boca. Mas, sempre com o pneu furado, imaginei que tivesse preguiça de andar. Minha mãe reclamava do óleo que pingava no lustroso cimento queimado da sala de visita e da futilidade pela qual meu pai discutiu e se intrigou com o único borracheiro de Pilar.

Então, o jeito, depois que meu pai foi pressionado, seria levar a moto, em cima do caminhão do ‘seu’ Nelson, para Itabaiana, onde já havia umas duas borracharias. Achei que a borracharia fosse uma coisa do outro mundo, tão importante como o consultório do pediatra da cidade vizinha, Doutor Tancredo, que era citado acima do procuradíssimo farmacêutico Israel, considerado o médico de Pilar. Assim foi feito. Por isso, achava que a tal de borracharia fosse uma coisa do outro mundo. Mas, chegando lá, eu, meu pai e o pneu furado, encontramos um pequeno quarto, de chão batido, teto baixo, escuro, em cuja porta mal cabiam, em várias linhas, a sua denominação: Borracharia Tabaianense. Suas paredes, manchadas pelas marcas dos pneus pendurados, eram tortas e condiziam com a sujeira no chão. Num espaço mais vago, estavam pregados um calendário do ano e vários dos anos passados, mas todos com retratos de mulheres nuas, mostrando todos os pelos, que eram separados por um bloco do Sagrado Coração de Jesus e por um crucifixo de madeira. A essa altura, já me tinha acostumado com a sujeira do ambiente, recuperando-se assim a importância daquela borracharia: quando a gente se acostuma com o indesejável, não passa a desejá-lo, mas também se torna indiferente à sua existência...

O borracheiro, sem camisa, vestia uma calça de madapolão bege que tinha perdido sua cor para a do barro do chão, onde o borracheiro trabalhava sentado, à espera que um rapazola lhe entregasse a câmara de ar furada da vez. Ali ficamos em pé para não nos encostar na parede ou não nos sentar no chão. Víamos curiosamente o trato que aquele homem, parrudo, dava à fina câmara de ar da motocicleta. Jogou-a num tanque de água barrenta, onde se viam umas bolhas de ar subindo, e logo se verificou que o ar estava escapando. Afobado, ele arrancou o tampão para pôr um novo remendo, recomeçando o trabalho: “Quem não faz bem a primeira vez faz duas vezes”; e refez o serviço com eficiente maestria. Não sei porque não esqueci aquele homem simples, que inspirou a simplicidade desta crônica: coisas da vida. O pneu voltou a Pilar para completar a motocicleta do meu pai, que, há muito tempo, não saía do lugar...

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