O episódio recente da autuação e prisão dos proprietários da butique Daslu, e do seu contador, nos traz algumas generosas lições e reflexões que não devemos desperdiçar. Uma delas, e que bem poderia ser utilizada em futuras campanhas publicitárias da loja, seria (Alô, alô, senhores publicitários! Aqui segue uma boa sugestão!): Daslu, uma questão de classe. Ou seja, trocadilhos à parte e falando sério, fica evidenciado que todo esse episódio tem como pano de fundo uma questão de classe. E explicita, de forma definitiva, toda nossa promiscuidade republicana. Mas a primeira lição, sendo mais preciso, é anterior à operação policial e ao flagrante delito propriamente ditos. Mas o delito já não era então menos flagrante. A existência de uma megaloja, luxuosa como essa e com produtos tão exorbitantemente caros, num país com uma população tão miserável e com tamanha desigualdade social como é o Brasil, já é um despropósito em si, um acinte. E o que é pior: ventila-se a informação de que o projeto recebeu até recursos do BNDES - o que é bastante provável, e deplorável, diga-se. Note que foi exatamente esse o aspecto destacado na imprensa internacional ao noticiar a inauguração da tal "megastore". Ou seja, a gritante contradição subjacente/inerente ao empreendimento em si - se é que ainda podemos denominá-lo assim, como um empreendimento. Talvez um monumento à futilidade e à concentração da renda. Talvez. A imprensa local na ocasião da inauguração, com raras exceções, limitou-se a fazer uma espécie de exaltação bajulatória e uma divulgação gratuita e bem detalhada do "empreendimento" (até a sua planta baixa foi estampada no jornal Folha de S.Paulo, por exemplo). Teria sido matéria paga? Paga com o quê? Alguns jornalistas enfatizaram ainda, é claro, o aspecto multiplicador da renda e do emprego que tal negócio propiciaria. Cabe indagar: emprego e renda para quem? Para algumas socialites e alguns bem-nascidos, decerto. Na esteira da repercussão da prisão dos donos da Daslu, descobriu-se então que a filha do governador do Estado de São Paulo (sim, esse mesmo que é candidato à Presidência da República) trabalhava na tal loja como vendedora, antes mesmo, esclareça-se, de ela tornar-se uma "megastore". E que, com a inauguração da nova e grandiosa store (em inglês fica mais chique), ela, a filha do governador, passou a condição de Diretora de Novos Negócios. Uma promoção insuspeita, diga-se, já que os pais não necessariamente são responsáveis pelos negócios dos filhos. Não é mesmo? Além do que, depois ficou evidenciado, o governador, bem como sua esposa, eram "amigos" e clientes da dona da loja, a Srª Tranchesi. Até aí, sem problema, não há improbidade alguma nisso, já que os políticos gostam mesmo de estar próximos das classes dominantes. Bem próximos - devido a essa "proximidade" é que certamente se dá essa "promiscuidade republicana" aludida aqui. Mas fica uma questão: como um servidor público, no caso um governador de Estado (ou mesmo sua esposa), com seus parcos proventos, pode ser cliente de uma loja que vende peças de roupas que chegam a custar a "bagatela" de R$ 11.000,00? Não há algo de estranho, suspeito, ou, no mínimo, inadequado nisso? Já que falamos em "promiscuidade republicana", descobriu-se também que o Ministro da Justiça do atual governo (portanto, o chefe da PF) e um senador da República que, por sinal, preside a CPI dos Correios, também eram (ou são) clientes dessa store - como pode ver, continuo mantendo o inglês pra ficar mais adequado. Volto a inquirir, já que ninguém ainda o fez: como um servidor público e um parlamentar, de parcos recursos e patrimônio, pode se dar ao luxo de ser cliente de uma loja com as características da Daslu? Não seria, para dizer o mínimo, impróprio? Mas o que pode ser considerado impróprio num país em que o Secretário de Educação de um Estado (o mesmo do governador Alckmin), homem de origem modesta, compra um apartamento de R$ 4.000.000,00? Ele também faz parte da turma. Aqui, ao que parece, a promiscuidade é geral. Uma outra lição emblemática, tirada desse episódio, foi a reação da Fiesp, mas, principalmente, da imprensa - notadamente colunistas do jornal Folha de S.Paulo e experientes jornalistas da TV Bandeirantes. É mesmo de estarrecer que um órgão que congrega e representa empresários possa defender empresários acusados de sonegação e descaminho. Agora, que jornalistas sejam coniventes com tal fato, é intolerável. Ou eles, empresários e jornalistas, estão querendo dizer que práticas delituosas como essas são toleradas, e até mesmo incentivadas, no meio empresarial e na grande imprensa. "Todos sonegam" - dirão alguns. O jornal Folha de S.Paulo, para vergonha de seus leitores, por intermédio de alguns de seus colunistas, saiu, no dia seguinte à operação da Polícia Federal e do Ministério Público, com duas ou três chamadas de capa condenando a operação e dando espaço desmedido ao queixume corporativista da Fiesp. Foi nesse instante, mais do que em muitos outros momentos da história recente da República, que ficou evidenciado a serviço de quem, e de quais interesses, está a nossa imprensa. Depois, decerto movido pela reação adversa dos seus leitores e da sociedade como um todo, o jornal mudou de opinião e passou a adotar um tom mais adequado ao tratar do assunto - até mesmo num equilibrado editorial. Antes tarde do que nunca. Uma pergunta que muitos fizeram e que repito aqui nesse espaço: onde estavam os colunistas da Folha e os empresários da Fiesp que nunca revelaram sua indignação republicana diante de tantas arbitrariedades cometidas pelas polícias (todas elas, mas notadamente as estaduais: militar e civil), quando estas diuturnamente invadem barracos a pontapés nas favelas, chacinam os pobres pretos ("e quase-brancos, e quase-pretos") nas periferias das grandes cidades e atiram ao camburão, debaixo de cassetetadas, camelôs e pequenos comerciantes acusados de sonegação e contrabando? - aí já não é descaminho, é contrabando mesmo. Onde estavam esses paladinos dos direitos civis que não reclamaram quando pobres coitados são execrados e humilhados diariamente nas ruas e nos telejornais de cunho policialesco que dão tanto Ibope? Onde estavam nessas horas a indignada Danuza Leão (argh!) e o indignado Gilberto Dimenstein da Folha, ou os indignados Fernando Mitre e Joelmir Beting da rede Bandeirantes, e os indignados empresários da Fiesp? Quanta indignação, não? Por quê será?
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