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SEÇÃO
Crônicas
31/05/2019 - 07h52
Nas selvas da noite
Rangel Alves da Costa
 

Depois das sombras da noite, depois dos sinos do amém e das preces de proteção, quando a escuridão começa a se espalhar pelos quadrantes e tudo se transforma em negação de toda luz, e sequer a lua dá conta de a tudo dar feição, então começam os mistérios que tanto atormentam os homens. Surgem então os bichos da noite, que não são apenas seres possíveis ou imaginários, mas também aqueles gestados nas profundezas inexplicáveis da alma.

Na infância, quando a criancinha era levada a adormecer por causa do bicho-papão, que debaixo da cama se escondia com unhas afiadas e dentes grandes, o temor impingido antecipava o que mais tarde se transformaria em outros bichos-papões. Os papões saíram debaixo das camas e foram espreitar na infinidade dos noturnos humanos. Depois disso, seja em qualquer idade, sempre haverá um bicho-papão perante os frágeis seres humanos. Dizem-se fortes demais, sem medo de nada, mas estremecendo sempre ante o desconhecido que surge após a boca da noite.

E assim por que a noite é um mistério sem fim. Nada mais instiga a alma humana que os segredos noturnos. Também assim com os animais das matas e florestas, tomando-se por exemplo os hábitos noturnos de muitos e principalmente do lobo sempre uivando a sua pujante dor. Não seria o homem um ser que se revela noutro, e este mais sensível e temeroso, perante os escuros, os desconhecidos e os mistérios da noite? A verdade é que a escuridão sempre revela a nitidez da fragilidade humana. Tem-se o medo como prova maior.

Além desse misterioso manto que a tudo recobre, tem-se que a noite é um zoológico sem fim, é uma povoação sem tamanho de bichos e outros seres que vão muito além da imaginação. Zoológico terrível pelas espécies que habitam as selvas da escuridão e da imaginação. Povoação medonha pelo que fica à espreita nos invisíveis labirintos. Portas fechadas que vão se abrindo nas revelações surgidas, nas histórias, nos causos e proseados, bem como no medo comum do povo.

Que se tenha como verdade ou não, mas indiscutivelmente que a noite é dos bichos. E quanto mais noite sem lua, no breu dos escondidos, mas os bichos surgem ferozes, vorazes, ameaçadores, comilões. Que ninguém se atreva a caminha sozinho pelas encruzilhadas, debaixo dos tufos de mato, em meio aos despovoados escurecidos. Aí as mãos e as garras ocultas das medonhices. Que ninguém se atreva passar perto dos cemitérios, das casinhas de orações nas estradas, perante as cruzes fincadas em tristes motivos.

Seja de pelo ou de pata, seja com unhas apunhalas ou dentes de sangue, seja em espectro ou desconhecido manto, seja arrastando correntes ou vagando em lamentosos gemidos, seja em assombrações que aparecem e somem, seja em medonhices invisíveis ou através de atitudes inexplicáveis, fato é que o desconhecido sempre aparece e sempre envolve a noturna escuridão. Daí ser a noite esse portal de onde vão aparecendo as estranhezas do mundo - ou do outro mundo - tanto para instigar como para amedrontar ainda mais o ser humano. Contudo, ainda assim sempre querendo ser conhecidas.

Todo mundo tem medo, mas também todo mundo quer ter esse medo. Até inexplicável que tanto se deseje conhecer aquilo que amedronta, mas a verdade é que o ser humano sempre quer conhecer histórias de assombrações, coisas do outro mundo, de aparições do desconhecido, de fatos e situações de arrepiar os cabelos. Depois tem medo de sair ou ficar sozinho, de enfrentar qualquer situação ao menos parecida com o relatado, mas nunca foge da vontade de conhecer as histórias. E histórias da noite que vão sendo contadas dentro da noite, como cenário ideal para o deslumbramento do espantoso.

Quem já ouviu falar do lobisomem, da mula-sem-cabeça, do fogo-corredor, do cancão de fogo, da visagem, do cavaleiro da noite, da gemedeira, do homem que vira bicho, do carro que pisca e pisca e nunca sai do lugar, do cavalo de olhos de fogo, da menina de branco, do menino sorridente, da voz sem rosto, da vela acesa na beira da estrada e do gemido ao lado dela, da mortalha que de repente aparece quando alguém está passando, do bicho de duas cabeças e vinte patas, do morto-vivo, do fantasma da corrente, das muitas e múltiplas assombrações que persistem alimentando os medos?

Não são, contudo, apenas estes espectros que se enraizaram como os bichos da noite humana. Outros bichos existem que não são menos terríveis que aqueles de repente surgidos para o arrepio ou o grito. Há também o bicho feio da depressão, o bicho horrendo da dor, o bicho perigoso da angústia, o bicho horripilante da culpa, o bicho terrível da solidão. Para não falar da lágrima, do luto, da perda, da desvalia de tudo ante as fragilidades humanas.

Bichos da noite, na alma noturna, nos sentimentos, no íntimo dos seres, mas que também possuem garras, dentes afiados, que arrastam grilhões, que atacam para devorar. Tão destrutíveis são que muitos os temem mais que os lobisomens da noite sem lua.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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