Era uma vez um grande país do chamado cone sul em que, nos primórdios da sua história, havia senhores e escravos. E, nesse país, tão peculiar e ao mesmo tempo tão igual aos demais, mesmo após o esgotamento do modelo escravista legal (ou talvez fosse melhor dizer “formal”), mantiveram-se intocados os papéis de senhores (uns poucos) e de escravos (a imensa maioria). Ou seja, uns poucos mandavam e muitos obedeciam. Uns poucos eram os proprietários das riquezas: os donos do poder. A imensa maioria, composta pelos servos ou escravos, vivia na mais absoluta miséria e dependia, para a sua sobrevivência, dos empregos e salários, também miseráveis, oferecidos pelos senhores. E as leis, claro, eram criadas para proteger e preservar esse estado de coisas. E assim seria por todo o sempre. Havia então, basicamente, duas classes sociais: os da Casa Grande e os da senzala. Na Casa Grande, opulência, conforto, muita luz, hábitos requintados, boa comida, boa educação e moral, boa saúde etc. Ao passo que, na senzala, alimentavam-se apenas das sobras, dormia-se no chão de barro batido, não havia esgotamento sanitário, não havia luz, vivia-se na mais absoluta escuridão. Tampouco havia boa educação e, muito menos, hábitos requintados. E coabitavam numa promiscuidade aviltante e contrária à boa moral e aos bons costumes – mas isso só em parte era verdade, até mesmo devido às precárias condições em que viviam, mas, na maioria das vezes, era puro preconceito dos membros da casta privilegiada mesmo. Porém, num incrível paradoxo, o povo da senzala guardava ainda, dentro de si, uma inexplicável e fortuita alegria que contrastava com o indisfarçável tédio e tristeza que se percebia nos da Casa Grande. A despeito de tudo isso, descobriu-se mais tarde, os hábitos dos homens e mulheres da Casa Grande não eram assim tão requintados e a sua moral não era assim tão ilibada. Descobriu-se que esses homens e mulheres reuniam-se, às escondidas e regularmente, em pantagruélicas festas. Eram grandes homens de negócios (lícitos ou não), políticos, magistrados, advogados bem sucedidos, artistas famosos, grandes jornalistas e até bispos e cardeais que se reuniam para celebrar os seus pecados e virtudes (mais pecados do que virtudes, diga-se) e ali decidiam os rumos e o futuro das comunidades em que viviam, e até do país. Sim, ali, em meio aquelas verdadeiras orgias, definiam-se diretrizes políticas e econômicas, decidia-se o futuro da nação. Ali, políticos e jornalistas eram aliciados e corrompidos pela boa mesa, pela boa bebida, por bons postos e cargos na máquina pública e pela remuneração propriamente em espécie que rolava à farta (uma espécie de propina que eles chamavam pelo simpático nome de “prêmio”, “bônus” ou “gratificação”). Como se vê, o uso de eufemismos pode servir para suavizar os efeitos de uma eventual ressaca moral. Ali, aprendia-se, em didáticas lições, que ética e moral eram conceitos relativos, que os fins justificavam os meios e que tudo valia, todos os expedientes, para que fosse preservado aquilo que eles chamavam de “Fraternidade”. O que alguns da senzala, que haviam tido algum acesso a educação, chamavam de status quo ou de establishment. Como uma espécie de máfia, eles mantinham aquelas reuniões, bem como todo aquele código de ética sombrio, e suas práticas um tanto heterodoxas/nebulosas, no mais absoluto sigilo e segredo. Ali, os grandes comerciantes, empresários e banqueiros compravam talentos, carreiras, consciências. Compravam políticos, jornalistas, juizes, desembargadores e graduados funcionários públicos oferecendo-lhes cargos, pequenos mimos ou mesmo dinheiro vivo. Todos aqueles homens e mulheres que ali se reuniam, e é bom que isso fique claro, eram verdadeiros próceres da sociedade e eram indivíduos acima de qualquer suspeita. Eram todos “homens e mulheres de bem” – por assim dizer. Todos eram apresentados à sociedade, por intermédio da TV, dos jornais ou revistas, pela chamada grande imprensa, como homens e mulheres de sucesso, como “homens e mulheres que edificam a nação”. E as coisas foram sempre assim, desde o início dos tempos. O silêncio cúmplice (a homertad) foi mantido. Até que, um dia, alguns indivíduos da senzala, chamados jocosamente de “puros” pelos da Casa Grande, resolveram colocar a cabeça para fora de onde seria o seu devido lugar, a senzala, e resolveram montar um partido político e assim disputar o poder (só o político, claro) dentro das normas do que eles, ingênuos que eram, acreditavam ser o jogo democrático. Mas o que incomodava aos da Casa Grande é que os “puros” tinham conquistado, àquela altura, a simpatia da imensa maioria dos indivíduos da senzala e, aí residia o problema, ainda não estavam devidamente integrados ao código de ética da Fraternidade (afinal, vale o parêntesis, eram os próprios indivíduos da senzala que davam sustentação política aos senhores “donos do poder”). E o que é pior: os puros conseguiram eleger o primeiro mandatário da república. E, para escândalo e ojeriza de todos os senhores, o novo mandatário era um egresso da senzala. Pela primeira vez, a República teria como seu primeiro mandatário um homem da senzala. Pela primeira vez, a Casa Grande veria, em alguns dos principais postos de governo, homens e mulheres advindos da senzala e não os seus iguais. Algo impensável! Foi então que alguns membros da Casa Grande tiveram a idéia genial de atrair os “puros” para a Fraternidade. A idéia era atrair os principais homens do presidente eleito e assim agrilhoá-los na mesma armadilha moral em que tantos já haviam sido aprisionados. Não foram necessários muitos convites, tampouco houve a esperada resistência e dificuldade, e os principais homens do presidente, ou de seu partido, já circulavam bem à vontade nos principais salões das grandes celebrações da Fraternidade. Agora já não havia “puros” – diziam alguns efusivamente, embriagados, seja pelo álcool ou pelo júbilo, em meio às grandes e eternas orgias da Casa Grande. Porém, um belo dia, não por acaso, mas por ironia do destino, um membro da Fraternidade, e justo um dos mais corruptos e amorais de todos eles, ameaçado que fora por um determinado escândalo que envolvia seu nome, e por alguns dos “puros” que ainda não haviam sido devidamente cooptados e ainda se preservavam “puros”, por assim dizer, resolveu trair o pacto do silêncio e revelou à sociedade algumas verdades, ou melhor, algumas verdades infames que lhe serviam de alicerce – a ela, sociedade como um todo, bem como à Fraternidade e à Casa Grande. Ele, por suposto, não iria cair sozinho e caindo pretendeu levar alguns “puros” junto com ele em sua desgraça. Não se sabe ainda, exatamente o porquê, esse tal membro da máfia que resolvera trair os seus iguais e o seu voto de silêncio, procurou um jornal da própria Casa Grande, e, portanto, imiscuído com essa tal Fraternidade, para fazer as suas denúncias. E por que um jornal da própria Casa Grande resolvera veicular denúncia que envolvia os seus iguais e assim quebrar o secular pacto de silêncio ?. Explica-se: aquela revelação atingiria muito mais os “puros”, que sempre negaram e foram contrários às práticas da Fraternidade, do que os seus próprios membros. Contanto que, como se procederia em seguida, as investigações não olhassem para o passado, mas tão-somente para o presente. E assim, estariam livres do tal presidente egresso da senzala, que tanto incômodo e desconforto lhes causava, e, de uma vez por todas, dos tais “puros”. Seria assim o fim da “pureza”. Mas isso tudo aqui relatado, você sabe, não passa de uma fábula. Uma fábula que os membros da senzala, em sua imensa maioria, assim como os ingênuos de todos os matizes, certamente jamais terão a capacidade de compreender. É mesmo muito difícil perceber o quanto de fabular (ou mesmo de fabuloso) há na vida real. É difícil até, para muitos, conseguir enxergar a simples (porém emblemática) existência da Casa Grande e da senzala.
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